Comento a seguir uma autêntica obra de arte cinematográfica, vencedora da Palma de Ouro de Cannes, mas que foi entendida
por pouquíssimas pessoas, mesmo dentre a crítica especializada. Não é um filme óbvio, de compreensão imediata, não é um filme "popular" (no pior sentido do termo), mas é certamente uma autêntica obra-prima!
A Árvore
da Vida é muito mais do que um mero entretenimento para se assistir
comendo pipoca. Dirigido pelo norte-americano Terrence Malick*, a ideia inicial
do filme teria sido digerida por cerca de 40 anos na mente filosófica de Malick
antes que o longa-metragem começasse a ser produzido. O resultado foi um filme
magistral, com atuações comoventes, fotografia fascinante e uma trilha sonora
esplêndida!
*O diretor é graduado em Filosofia por Harvard, exerceu o
magistério no Massachussets
Institute of Technology e só não se pós-graduou em Oxford por causa de desavenças
com seu orientador acadêmico. Malick também é tradutor de uma obra do filósofo
existencialista alemão Martin Heidegger.
Creio que jamais se produziu outro
filme que fosse tão simplificadamente abrangente quanto A Árvore da Vida. Ele remete à origem do universo, às primeiras
formas de vida na Terra e relaciona esses eventos pré-históricos com a história de uma família
comum. Através dessa família, Malick desvela realidades de incompreensão,
dúvida, morte, raiva, escolha, liberdade, revolta, violência, sentido, perdão e, principalmente, amor. O filme
fala de um modo surpreendente da minha própria vida e provavelmente fala bastante
da sua também! Porém, há quem tenha visto apenas puro nonsense no longa, entremeado por cenas à primeira vista desconexas,
mas que, quando bem compreendidas e encaixadas, fazem surgir um quadro extraordinário
feito com peças do nosso quebra-cabeças existencial.
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O longa não economiza nas cenas repletas de beleza e simbolismo |
Encontrei tantas interpretações
disparatadas e preguiçosas sobre este filme na internet que resolvi escrever eu
mesmo sobre o que ele realmente comunica com clareza! E acredito que o leitor
pode confiar na minha interpretação não apenas porque o assisti várias vezes
(sem ter conseguido entender muita coisa nas duas primeiras, admito), mas
também porque me esforcei para captar as alegorias filosóficas e teológicas da
narrativa.
É evidente, contudo, que não pretendo aqui decifrar todos os símbolos imagéticos e dizeres obscuros contidos no longa, até porque muita coisas ali está aberta à interpretação subjetiva. Entretanto, há reflexões objetivas que são ali suscitadas com clareza, embora não com uma linguagem sempre direta, o que torna sua compreensão menos acessível às massas.
É evidente, contudo, que não pretendo aqui decifrar todos os símbolos imagéticos e dizeres obscuros contidos no longa, até porque muita coisas ali está aberta à interpretação subjetiva. Entretanto, há reflexões objetivas que são ali suscitadas com clareza, embora não com uma linguagem sempre direta, o que torna sua compreensão menos acessível às massas.
Atenção, se você nunca viu o filme, recomendamos que o assista uma vez na íntegra, antes de ler este artigo,
para melhor degustá-lo, compreendê-lo e maravilhar-se com ele mais tarde. Depois de assistir uma vez, leia este
artigo e torne a assistir o filme com o cabedal interpretativo que
fornecemos nas linhas a seguir.
Para abordar temas profundamente
filosóficos e nada vulgares, Malick se vale da história de uma família bastante
comum: os O’Brien, uma típica família estadunidense de classe média-baixa, ascendência irlandesa
– como sugerem o seu sobrenome e confissão religiosa –, três filhos e uma razoável
estabilidade econômica. O diretor se vale do ordinário para remeter ao
extraordinário; mostra como o natural e imanente é capaz de apontar para o transcendente e o fim último da existência.
O filme segue uma narrativa
não-linear que transita principalmente entre três tempos: A perda dramática de
um dos filhos do casal O’Brien com a idade de 19 anos (1º tempo), a
pré-adolescência dos três filhos do casal num contexto de vida simples e
interiorana (2º tempo) e a vida adulta e metropolitana do filho Jack,
interpretado na fase adulta por Sean Penn (3º tempo).
Jack é o que mais se aproxima do
que ordinariamente chamaríamos de um protagonista. Mas ele divide esse
protagonismo com o pai, a mãe e o Agente oculto e metafísico que paira acima da
narrativa, que produz os eventos pré-históricos que o filme resgata e com quem
os três outros protagonistas dialogam nos momentos mais cruciais. Deste último,
entretanto, só vemos alguma aparência em calmas e misteriosas luzes informes
que eventualmente aparecem na tela. E suas “falas” só se dão por meio dos
acontecimentos, dos cenários naturais e da trajetória dos outros personagens; é
um Personagem que é Ato Puro (v. Aristóteles), que já É tudo o que poderia vir
a ser e que diz de Si no acontecendo da História.
Sra. O’Brien (a mãe)
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Jéssica Chastain interpretando a Sra. O'Brien, esposa do personagem de Brad Pitt |
Como, logo no começo do filme,
esta personagem recorda uma antiga lição, segundo a qual toda pessoa deve
escolher entre o caminho da Natureza e o caminho da Graça¹, alguns
interpretaram que o pai da família era o “avatar” da Natureza (por ser mais
impulsivo, irascível e durão), e a mãe, o da Graça.
¹A personagem diz que a Natureza “busca apenas sua autossatisfação e outros que também a satisfaçam, gosta
de nos assoberbar, de fazer tudo à sua maneira e encontra razões para sentir-se
triste, mesmo com o mundo todo a brilhar ao seu redor e o amor a sorrir por
toda parte”, enquanto a Graça “aceita
ser menosprezada, esquecida, desprezada, aceita insultos e golpes” e os que a seguem “nunca
tem um fim infeliz”.
Mas considero esta uma
interpretação simplista. A Graça e a Natureza não se personificam no filme. Elas
são forças antagônicas que se manifestam, uma ou outra, em cada escolha e em
cada ato das personagens separadamente, não nas suas personalidades inteiras!
São as escolhas e atitudes individuais dos personagens que nos revelam o
caráter da Natureza e o caráter da Graça! A mãe não reflete 100% a Graça. (Quando ela confronta Deus ou quando
parte pra cima do marido truculento, por exemplo, ela está seguindo a Natureza!)
E o pai tampouco é pura Natureza: cada gesto de amor esponsal e paternal
e cada ato de arrependimento do Sr. O’Brien é uma escolha pela Graça!
Logo depois de receber a notícia
da morte do filho de 19 anos, a mãe questiona: “Senhor... Por quê?... Onde você
estava?...”
É um questionamento que indica crise
de fé, incerteza, desconsolo, insegurança!...
E seguem-se imagens de nuvens luminosas
e etéreas se movendo, seguidas por cenas da origem do universo e da geração das
primeiras formas de vida na Terra. Estas cenas, inseridas bem no meio do drama
da Sra. O’Brien, pareceram descontextualizadas, puro absurdo, para muitas espectadores,
mas elas não são nem um pouco descabidas ou ilógicas.
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As imagens cósmicas são vetores para a metafísica de fundo que permeia o filme |
Essas imagens são a resposta ao
questionamento da mãe e são a explicação da epígrafe que abre o filme: “Onde
estavas quando lancei os
fundamentos da terra sob os alegres concertos dos astros da manhã, sob as
aclamações de todos os filhos de Deus?”
(Jó 38, 4;7)
Este trecho é parte da resposta de Deus a Jó,
o justo que foi testado pelo sofrimento atroz. A cultura popular o
retrata como símbolo de paciência e resignação, mas a narrativa bíblica diz que
Jó teve uma reação bastante comum ante os males que se abateram sobre ele:
queixou-se contra o seu Criador (Jó
30, 19ss) e quis justificar-se, apresentar-se como vítima de uma
injustiça, de um castigo imerecido, “dando
assim culpa a Deus” (Jó 32,
3c). É em resposta a essa atitude que o Onisciente lança aquelas
perguntas retóricas à criatura que pretende corrigi-Lo.
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Jó, o justo provado pela desolação |
As personagens de Malick em A Árvore da Vida são, cada qual a seu
modo, versões atualizadas de Jó (embora
não apenas de Jó, mas também de outras figuras emblemáticas, como veremos mais
à frente).
É como se o Interlocutor invisível da inconsolável Sra. O’Brien lhe dissesse: “Você não é capaz de compreender a razão da morte do seu filho. Você não tem uma visão do quadro maior, não tem o direito de Me julgar! Você, tal como Jó, não estava lá quando Eu criei o universo ou quando dei vida ao barro! Não conhece o meu modo de proceder, não sabe como eu concateno as coisas para que tudo concorra para o bem.” (v. João 9, 1ss e Rm 8, 28)
É como se o Interlocutor invisível da inconsolável Sra. O’Brien lhe dissesse: “Você não é capaz de compreender a razão da morte do seu filho. Você não tem uma visão do quadro maior, não tem o direito de Me julgar! Você, tal como Jó, não estava lá quando Eu criei o universo ou quando dei vida ao barro! Não conhece o meu modo de proceder, não sabe como eu concateno as coisas para que tudo concorra para o bem.” (v. João 9, 1ss e Rm 8, 28)
Voltando às referências filosóficas, essa reflexão que
o filme suscita nos remete à Teodiceia
de Leibniz, que Malick certamente deve ter lido. Segundo o filósofo alemão, nós
tendemos a ver males em excesso no mundo porque temos uma visão parcial e
limitada, por não termos a visão divina que contempla o bem que há no quadro
completo. Leibniz recorda que muitas cenas de peças de teatro são ruins quando
tomadas isoladamente, mas fazem a peça ser boa quando inseridas no todo².
Assim, sem violar o livre-arbítrio do homem, que é um bem em si, Leibniz considera que a Providência opera para produzir “o melhor dos mundos possíveis”, de modo que o todo resulte em bem, apesar dos males parciais que nos fazem duvidar daquela Providência.
Assim, sem violar o livre-arbítrio do homem, que é um bem em si, Leibniz considera que a Providência opera para produzir “o melhor dos mundos possíveis”, de modo que o todo resulte em bem, apesar dos males parciais que nos fazem duvidar daquela Providência.
² O mesmo se poderia dizer do próprio filme de Malick, cujas
cenas são recortes de acontecimentos que, sozinhos, não fazem sentido, mas que
produzem uma obra primorosa da sétima arte no seu conjunto. Ou, pra usar um
exemplo real e histórico, a morte do Dr. King, nos EUA, foi em si um mal, mas
talvez o movimento pelos direitos civis dos negros não teria ganhando tanto
impulso sem este acontecimento e a discriminação teria se estendido por sabe-se
lá quando anos mais.
Enquanto o cosmos vai se formando
e expandindo maravilhosamente e a Sra. O’Brien lança suas angustiadas indagações
ao Céu, a música comovente que ouvimos no filme é uma Lacrimosa
de Zbigniew Preisner. Lacrimosa é uma
parte do texto da sequência Dies Irae
da tradicional Missa de Réquiem, que já teve versões musicalizadas compostas por Mozart e Verdi. Mas, em diversas ocasiões, a
palavra "Lacrimosa" também se
refere à mais expressiva das mães que já choraram a perda de um rebento saído de suas entranhas: Maria, a Mãe
de Cristo.
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Sra. O'Brien e a lacrimosa Virgem das Dores |
De todos as vozes humanas da obra, a da mãe parece representar a alma que mais reconhece a
Graça, a que mais facilmente consegue captá-La, embora tivesse questionado a Providência ao passar pela dor extrema da perda do filho.
Sr. O'Brien (o pai)
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O pai da família O'Brien, interpretado por Brad Pitt |
O
personagem de Pitt é um homem que ama a sua família, dá carinho aos filhos e se esforça para prover o que necessitam. Mas é também um homem rigoroso, um pai à moda antiga, que exige dos filhos gestos de amor, obediência, submissão e diligente dedicação nas pequenas tarefas que lhes encarrega.
Assim, sua relação de amor e prova para com os filhos assemelha-se à do Deus bíblico para com os seus eleitos³, exceto pelo fato de que o Sr. O'Brien desconta irascivelmente na família suas frustrações pessoais, geradas provavelmente por ele não ter suas patentes reconhecidas, por não ser rico ou por não ter podido ser músico.
³ "Demos graças ao Senhor nosso Deus, que nos submete a provações, como fez com nossos pais. Lembrai-vos de tudo o que Deus fez a Abraão, de como provou Isaac, de tudo o que aconteceu a Jacó. Assim como os provou pelo fogo, para lhes experimentar o coração, assim também ele não se está vingando de nós. É antes para advertência que o Senhor açoita os que dele se aproximam." (Judite 8,25-26a.27 - trad. Nova Vulgata)
Após o falecimento de um dos filhos, o vemos arrependido pelo modo grosseiro com que o tratava. Em outro momento, num diálogo interno consigo, reconhece sua soberba: “Eu queria ser amado porque eu era grande. Um grande homem. Mas eu não sou nada.” E se reconcilia com a vida, com os dons que lhe foram dados: “Olhe para a beleza ao nosso redor. Árvores, pássaros. Eu vivia em vergonha. Eu desonrava tudo e não notava a glória. Que homem tolo!”
Jack (o filho mais velho)
O filho mais velho da família O'Brien é também o mais indócil, o que mais herdou o temperamento impulsivo do pai e é também o personagem no qual o conflito moral e espiritual é mais intenso, quiçá devido às inquietudes próprias da adolescência.
Numa cena mística que precede o seu nascimento, o vemos, na figura de um garotinho vestido de branco, sendo orientado e conduzido à vida terrena por uma figura angelical, junto com outras alminhas recém-criadas. Logo em seguida, há um quarto inundado - o útero materno, interstício entre a realidade espiritual e o plano material - do qual sai para nascer no mundo, dando encanto aos pais.
O pai lhe ensina a dar os primeiros passinhos e lhe apresenta o mundo. A mãe brinca com ele, cura-lhe os esfolados, ama-o. Quando o primeiro irmãozinho vem, manifestam-se os primeiros sinais de egoísmo: o pequeno Jack sente ciúmes, faz birra e até ameaça atirar um brinquedo na mãe, que segura o irmão nos braços. É a concupiscentia naturae dando as caras.
Então, o pequeno arrependido reflete: "O que foi que você me mostrou?... Eu não sabia como nomear você, pecado... Mas eu direi que aquilo era você... Sempre você estava me chamando..." Eu diria que, nesse instante, o protagonista identifica com clareza o gosto amargo do pecado, do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, com suas propriedades sedutoras e corruptoras, tentadoras e destrutivas.
*O filme faz-nos recordar que tudo o que recebemos nesta vida é dom, é gratuidade amorosa, seja do Criador, seja dos pais, que são também sinais do amor d'Ele. Logo, é tolice e arrogância nossa querer exigir mais do que nos é dado e querer estar sempre isentos de contrariedades! A atitude que Malick parece nos propor é outra... Uma atitude de gratidão, amor, perdão e aceitação das contrariedades!... "Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1,21)
Se há alguma crítica no filme, é a crítica à resistência da soberba egoísta, que frequentemente pode se tornar violenta e revoltosa, à gratuidade do Bem. Mas, mais do que isso, Malick nos mostra o caminho para termos acesso novamente àquela Árvore perdida!
Assim, sua relação de amor e prova para com os filhos assemelha-se à do Deus bíblico para com os seus eleitos³, exceto pelo fato de que o Sr. O'Brien desconta irascivelmente na família suas frustrações pessoais, geradas provavelmente por ele não ter suas patentes reconhecidas, por não ser rico ou por não ter podido ser músico.
³ "Demos graças ao Senhor nosso Deus, que nos submete a provações, como fez com nossos pais. Lembrai-vos de tudo o que Deus fez a Abraão, de como provou Isaac, de tudo o que aconteceu a Jacó. Assim como os provou pelo fogo, para lhes experimentar o coração, assim também ele não se está vingando de nós. É antes para advertência que o Senhor açoita os que dele se aproximam." (Judite 8,25-26a.27 - trad. Nova Vulgata)
Após o falecimento de um dos filhos, o vemos arrependido pelo modo grosseiro com que o tratava. Em outro momento, num diálogo interno consigo, reconhece sua soberba: “Eu queria ser amado porque eu era grande. Um grande homem. Mas eu não sou nada.” E se reconcilia com a vida, com os dons que lhe foram dados: “Olhe para a beleza ao nosso redor. Árvores, pássaros. Eu vivia em vergonha. Eu desonrava tudo e não notava a glória. Que homem tolo!”
Mais tarde, é rebaixado na empresa e aceita isso com
resignação. Reconhece que foi duro com o filho Jack e lhe diz que não se
orgulha disso. O filho diz: “Eu sou tão mal quanto você. Sou mais parecido com
você do que com ela.” (O que é verdade. Jack e seu pai parecem tender mais
facilmente para a Natureza impulsiva e revolta, enquanto a mãe e os demais filhos parecem se dar mais facilmente com a Graça.) Eles se abraçam, emocionados. É uma linda cena de confissão e
reconciliação.
A notável atuação de Pitt nos revela apenas um homem que, assim como tantos outros, procura ser bom, apesar de suas limitações, na medida em que vive o conflito interior de luta entre os impulsos egoístas, insatisfeitos e dominadores da natureza decaída e as sugestões afáveis e restauradoras da Graça.Jack (o filho mais velho)
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Jack é interpretado na adolescência por Hunter McCracker |
Numa cena mística que precede o seu nascimento, o vemos, na figura de um garotinho vestido de branco, sendo orientado e conduzido à vida terrena por uma figura angelical, junto com outras alminhas recém-criadas. Logo em seguida, há um quarto inundado - o útero materno, interstício entre a realidade espiritual e o plano material - do qual sai para nascer no mundo, dando encanto aos pais.
O pai lhe ensina a dar os primeiros passinhos e lhe apresenta o mundo. A mãe brinca com ele, cura-lhe os esfolados, ama-o. Quando o primeiro irmãozinho vem, manifestam-se os primeiros sinais de egoísmo: o pequeno Jack sente ciúmes, faz birra e até ameaça atirar um brinquedo na mãe, que segura o irmão nos braços. É a concupiscentia naturae dando as caras.
O
pai e a mãe também lhe são sinais e comunicadores do Amor metafísico que
resume a trama. Isto nota-se não apenas nos gestos de carinho e cuidado
deles, mas também na medida em que lhe dão os primeiros "mandamentos" (a mãe lhe ensinando a não ser agressivo e o pai lhe ensinando a não "cruzar a linha" que separa o seu quintal do do vizinho significam mais do que parece, como tudo no filme), demandam amor e obediência, o que mais tarde
gera certa rebeldia no filho mais velho.
Na
terceira vez em que o vi, já senti que o filme retratava muito da minha própria adolescência! Estão ali os
conflitos internos e externos de qualquer garoto de classe
média-baixa, criado numa família amorosa, mas com um pai um tanto rígido. Estão ali os impulsos de agressividade, os ciúmes dos irmãos e até a ideia de seguir de longe a garota bonita da escola sem ter coragem de dizer nada a ela. Acho que este filme fez muitos homens voltarem ao passado e rever a mentalidade e o
comportamento que tinham quando passavam pela puberdade...
Os impulsos de transgressão, de curiosidade, um misto de medo e antagonismo para
com o pai, está tudo ali!...
Ainda bebê, os pais levam Jack à pia batismal. Mais tarde, impressionado pela visão de criminosos condenados, ora: “Ajude-me
a não desrespeitar meu pai. Ajuda-me a não atiçar os cachorros... Ajude-me a ser
grato por tudo que tenho... Onde você mora?... Ajuda-me a não mentir...Você está me
vendo?... Quero saber o que Você é. Quero ver o que Você vê.”
Mas, quando um de seus amigos morre afogado na piscina, Jack questiona a bondade de Deus: “Por que eu deveria ser bom, se
você é...?” Vê incoerências entre o discurso e a conduta do pai, detesta suas mentiras, exigências e o jeito durão com que os trata, o que
alimenta um senso de revolta em seu interior. A tentação está sempre presente,
insinua-se como a serpente do Éden; na estimulação agressiva dos outros moleques (quebrando vidraças e explodindo ninhos de pássaros com bombinhas), nos
pensamentos hostis ao pai, nos desafios feitos ao irmão, no protesto de insubmissão que dirige à mãe: "Não quero fazer o que você me manda. Quero fazer o que eu quero."
Jack censura a mãe por ser submissa ao pai. É crescente a sua rebeldia. Abusa da confiança do irmão. Deita água sobre sua pintura e a estraga por pirraça ou, talvez, inveja!
Desafia o irmão mais novo a
enfiar um fio metálico no bocal do abajur. O pequeno receia, mas enfim faz o
que o irmão pede e diz “Eu confio em você”. E depois põe também o dedo no bocal. Ele parece conservar a inocência perdida por Jack. Depois, diz ao irmão menor para botar o
dedo na boca do cano da espingarda de pressão e atira! Machucado, o irmão sai
correndo e chora.
E ouvimos Jack pensar:
“O que eu quero fazer, eu não posso. Eu faço o que eu odeio.”... É praticamente
uma paráfrase do que escreveu São Paulo Apóstolo em Romanos 7,19. Jack está a conjecturar sobre a nossa inclinação para o
mal, herança da culpa original. O antagonismo entre inocência e violência, tanto no interior de Jack quanto na sua relação com o irmão, salta aos olhos!
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Cena da tentação do patricídio |
“Pai... Por que ele nasceu?...”
Debaixo de um carro sem uma das rodas, erguido por um macaco, o pai faz reparos.
Jack se aproxima, a tentação o ronda mais uma vez... Basta empurrar a alavanca
do macaco e ele ficará livre do pai... Não o mata. Mas pouco depois, em oração, pede a Deus
que o mate! Num outro momento, o pai o
acaricia com afeto, mas ele não vê, está dormindo... Penso que esta cena tem também um sentido teológico...
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Jack, adolescente, passa pela traumática experiência de perder a inocência |
O jovem protagonista observa a sua vizinha adulta e casada. Numa ocasião, espera todos saírem, entra furtivamente em sua casa, vai ao quarto, abre a gaveta de roupas íntimas e olha, fascinado, para uma camisola da mulher. Rouba-a! Esconde-a, num primeiro momento, mas depois a joga na correnteza do rio. Sente o peso da culpa... Chora e se envergonha ante o olhar da mãe, mesmo ela não sabendo o que ele fez... "O que foi que eu comecei?... O que foi que eu fiz?..."
Em outra cena, grita com
raiva para o pai: “Ela ama só a mim!”, em referência à mãe. O pai não reage.
Apenas o olha assustado, como se se questionasse sobre a causa da revolta do
filho. Aqui pode parecer inevitável não associar a atitude de Jack ao Complexo de Édipo
freudiano. Mas Jack não detesta o pai simplesmente por querer a mãe só para si.
Não se trata de uma rivalidade pelo amor da mãe, mas sim de não aceitar as
correções, exigências, incoerências e abusos de autoridade do pai.
Tendo machucado e magoado o irmão mais novo, Jack se dá conta da maldade do que fez: “Como faço para voltar?... Onde
eles estão?...” “Voltar” talvez seja uma referência ao estado de
inocência primevo, perdido nas primeiras transgressões conscientes. Mas não pude chegar a uma conclusão sobre quem ou o quê seriam “eles”.
Depois, tenta animar o irmão,
beija-lhe o braço, numa maneira de pedir desculpas com um gesto.
Dá-lhe um pedaço de madeira e, como que querendo redimir-se, diz: “Você pode me
bater, se quiser”. O irmão ameaça, mas não bate. Então, Jack lhe pede desculpas
e o irmão não somente o perdoa, mas manifesta gestos paternais de compreensão. De pé, iluminado pela luz que entra da janela, o irmãozinho põe a mão sobre a
cabeça abaixada de Jack. Parece o próprio Cristo perdoando um penitente...
Então, o pequeno arrependido reflete: "O que foi que você me mostrou?... Eu não sabia como nomear você, pecado... Mas eu direi que aquilo era você... Sempre você estava me chamando..." Eu diria que, nesse instante, o protagonista identifica com clareza o gosto amargo do pecado, do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, com suas propriedades sedutoras e corruptoras, tentadoras e destrutivas.
A partir daí, Jack torna-se mais
afável, reaproxima-se do pai, ajuda-o na horta, arranca uma folha estragada de
uma verdura, o que também me parece significar algo mais... A imagem da poda de uma planta muitas vezes é símbolo da poda do caráter, da retirada das partes deterioradas do Ego, a purificação, a limpeza da planta interior que possibilita a regeneração!
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Sean Penn interpreta Jack na vida adulta |
Já adulto, Jack reflete: “Você falou comigo através dela. [provável referência à mãe] Você falou
comigo dos céus. As árvores. Antes mesmo de eu saber que te amava, que
acreditava em você. Quando foi que você tocou meu coração pela primeira vez?...”
A Árvore
"Ajudem-se uns aos outros. Amem a todos. Cada folha. Cada feixe de luz. Perdoem." (Voz da Sra. O'Brien, numa cena em que ela aparece brincando com os filhos)
"Ajudem-se uns aos outros. Amem a todos. Cada folha. Cada feixe de luz. Perdoem." (Voz da Sra. O'Brien, numa cena em que ela aparece brincando com os filhos)
O Gênesis narra que havia duas árvores no jardim do Éden:
I) A árvore da Vida, que é a árvore da imortalidade, da qual só se pode comer permanecendo inocente.
E II) A árvore do conhecimento Bem e do Mal, portadora do fruto proibido, que podemos identificar como "pecado".
Como sabemos, Deus
expulsa o primeiro casal do Paraíso, tornando-os passíveis de sofrimento e morte, e ordena aos anjos que guardem a Árvore da Vida: uma vez que perdemos a inocência, a pureza e a bondade originais, perdemos o direito à imortalidade.
Numa cena de sua vida adulta, Jack, refletindo sobre o irmão
morto precocemente, olha para uma árvore cercada de altos edifícios e pergunta:
“Como foi que eu perdi você?...”
O abandono da inocência e opção pela rebeldia é a
rejeição da Árvore da Vida e a opção pelo fruto proibido. Mas você não precisa crer no Gênesis para aceitar o dado antropológico de que o homem tende naturalmente para o egoísmo e, não raramente, para o mal. Filosoficamente, essa tendência pode ser chamada de "existencial negativo".
Ante essa inclinação, o homem pode simplesmente ceder a ela ou pode acolher a Graça e lutar contra o "existencial negativo" de sua natureza.
É o que nos leva a dar mais valor a futilidades inúteis do que às coisas que realmente importam, o que nos inclina a fazer coisas imbecis, muitas vezes perversas, e a ter preguiça
de fazer o bem.
Ante essa inclinação, o homem pode simplesmente ceder a ela ou pode acolher a Graça e lutar contra o "existencial negativo" de sua natureza.
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Há dois caminhos: o da Natureza e o da Graça. Você tem que escolher qual vai seguir. |
O caminho da Natureza é fácil, automático e cômodo. O da Graça supõe o sofrimento, a humildade e a renúncia como instrumentos de purificação. Quem escolhe o caminho da Graça deve aceitar o sofrimento com resignação, com sentido sobrenatural, não com revolta. No filme, pela figura de um padre, Malick nos diz:
“Não podemos ficar
no mesmo lugar. Temos que continuar nossa jornada. Temos de encontrar aquilo
que é maior que a riqueza, que o destino. Nada, senão isso, pode nos trazer a
paz. O corpo do sábio ou do justo está livre de dor? De inquietude? Da
deformidade que pode destruir sua beleza ou da fraqueza que pode destruir sua
saúde? Você confia em Deus? Jó também estava próximo do Senhor. Seus amigos e
seus filhos são a sua segurança? Não há esconderijo em todo o mundo onde os
problemas não possam encontrá-lo. Assim como Jó, ninguém pode saber quando o
sofrimento baterá à sua porta. No momento em que tudo foi tirado de Jó... ele
sabia que fora Deus que o havia feito. Parou então de se preocupar com as
coisas efêmeras da vida e passou a procurar aquilo que é eterno...”
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Ilustração cristã sobre os dois caminhos que podemos escolher |
Pelos dramas dos personagens, sobretudo do jovem Jack e de seu pai, Malick expõe, nuas e cruas, a nossa soberba, a nossa ingratidão*, a nossa inquietude, a nossa irracional insatisfação, a nossa cegueira...
*O filme faz-nos recordar que tudo o que recebemos nesta vida é dom, é gratuidade amorosa, seja do Criador, seja dos pais, que são também sinais do amor d'Ele. Logo, é tolice e arrogância nossa querer exigir mais do que nos é dado e querer estar sempre isentos de contrariedades! A atitude que Malick parece nos propor é outra... Uma atitude de gratidão, amor, perdão e aceitação das contrariedades!... "Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1,21)
Se há alguma crítica no filme, é a crítica à resistência da soberba egoísta, que frequentemente pode se tornar violenta e revoltosa, à gratuidade do Bem. Mas, mais do que isso, Malick nos mostra o caminho para termos acesso novamente àquela Árvore perdida!
Penso que este longa tem muito a dizer à
nossa geração, uma geração que se considera mais "esclarecida" do que
todas as outras precedentes, uma geração que gosta de falar de "humildade" e
posar de virtuosa, mas que é incapaz de admitir as próprias culpas, de pedir
perdão, de abaixar a cabeça e de se ajoelhar! Uma geração que parece dizer: “Se Deus existe, então Ele tem obrigação
de alegrar suas criaturas o tempo todo, de não deixar que sofram, nem um
pouquinho que seja, nem para o seu próprio crescimento, nem para a expiação
das suas próprias culpas!” O mundo está cheio de gente que quer que Deus as faça felizes aqui e agora, não na Eternidade, não do jeito d'Ele, mas "do meu jeito e já!"... Supõem: "Se Ele não faz todos imediatamente felizes, Ele não é Deus, Ele não existe! É apenas uma ilusão que dá conforto pra alguns ingênuos!"...
Malick nos permite admitir que o sofrimento, uma vez aceito com contrição, redime, faz crescer, traz reconciliação e se transfigura no final em alegria e dom, como na cena paradisíaca em que a mãe O'Brien, que outrora chorava pelo seu rebento morto, declara aos Céus: "Eu o dou a Você. Eu Lhe dou meu filho."
Notórios autores espirituais cristãos, alguns deles santos, chamaram a própria Cruz, símbolo do martírio de Cristo, de “Árvore da Vida”. Existem inclusive hinos que a chamam assim. Mas por quê?... Bem, talvez porque o “bendito fruto” da árvore da Cruz, que é o próprio Cristo crucificado, nos restituiu a possibilidade (perdida do Éden) de uma Vida Eterna, sem angústias nem dores.
Zeca Camargo
A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando: "Mas o que o Zeca Camargo, que você invocou no título, tem a ver com tudo isso?..." Bem, no ano em que o filme chegou aos cinemas, o famoso jornalista e apresentador escreveu um artigo sobre o longa intitulado "O Cômico e o Cósmico" em seu blog no portal G1. E me chamaram a atenção as suas seguintes palavras:
"O filme mexeu tanto comigo que me fez reconsiderar até mesmo minha posição com relação à fé. Ela é um pouco complexa (e indefinida) demais para eu poder dividi-la hoje aqui com você, mas, apenas para continuar a discussão, digamos que eu já tinha resolvido que fé era uma coisa que não faria parte da minha vida. Mas aí chega Malick e me reapresenta a Graça Divina como o único amor que de fato pode nos salvar – como não me sentir cutucado com isso? As perguntas que Jack – e eventualmente seu pai e sua mãe – colocam ao Criador são longe de ser tolas, ou simplesmente retóricas. São pontuais e indispensáveis para nos fazer pensar na cena que estamos vendo – e nos provocar por muito tempo depois que saímos do cinema."
A quem queira objetar que a "fé" do Zeca chacoalhada pela obra de Malick era, na verdade, uma "não-fé", convido à leitura desta obra www.bit.ly/1UeVz0Y e encerro este artigo com um trecho das cenas finais do filme To The Wonder ("Amor Pleno", no Brasil), também dirigido por Malick, e dois bônus literários: um poema de Adélia Prado e um trecho do romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, que casam perfeitamente com A Árvore da Vida.
Cenas de espiritualidade no filme Amor Pleno:
https://www.youtube.com/watch?v=cPnFThIH7Qo
Excerto de "Os Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski, Parte II, Livro Sexto, Capítulo I, b:
Notórios autores espirituais cristãos, alguns deles santos, chamaram a própria Cruz, símbolo do martírio de Cristo, de “Árvore da Vida”. Existem inclusive hinos que a chamam assim. Mas por quê?... Bem, talvez porque o “bendito fruto” da árvore da Cruz, que é o próprio Cristo crucificado, nos restituiu a possibilidade (perdida do Éden) de uma Vida Eterna, sem angústias nem dores.
Nesse
prisma, o filme resgata as imagens teológicas da Criação e da Redenção para
mostrar como estes dois atos divinos de proporções cósmicas se fazem presentes
em uma família comum. Ou, ainda, é sobre como a reconciliação salvadora se faz
possível pela abertura à Graça e pela aceitação do sofrimento (não num sentido
masoquista, mas como algo próprio da natureza humana caída, que precisa sofrer;
não em vão, mas para expiar, para reparar pelos males que fazemos e pelo bem
que negligenciamos).
Um
viciado em crack que quiser se desintoxicar e se libertar do vício,
necessariamente vai sofrer! A abstinência pode ser terrível! No entanto, o
sofrimento é necessário para o seu tratamento, reabilitação e cura, como em
quase todos os casos de doenças e vícios humanos. É por isso que médicos e
terapeutas às vezes nos fazem sofrer e é por isso que Deus muitas vezes permite
que soframos neste mundo de misérias.
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Uma lei que vale para o corpo, e mais ainda para o espírito. |
Sem
padecimento, dificilmente alcança-se uma cura ou uma evolução pessoal. “No pain, no gain!” (“Sem dor,
sem ganho!”), dizem os treinadores e praticantes de exercícios físicos. O
mesmo vale para o nosso eu mais
profundo, o eu espiritual. O
sofrimento faz-se inevitável se quisermos sanar e desenvolver o cerne mais
profundo da nossa natureza.
Embora
muitos falem de “várias interpretações possíveis”, fica patente que este filme
retrata como a nossa natureza viciada, além de repudiar ser contrariada,
fomenta o orgulho, a violência, a rebeldia. Enquanto isso, a Graça, por vias
insondáveis, nos suscita o arrependimento e nos impele a uma iniciativa de humildade,
que tem, por fim, a plena reconciliação do homem (não só com o seu pequeno círculo
familiar/social, mas também com o macrocosmo e com o Autor de ambos) e sua
realização plena, sua felicidade última.
Zeca Camargo
A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando: "Mas o que o Zeca Camargo, que você invocou no título, tem a ver com tudo isso?..." Bem, no ano em que o filme chegou aos cinemas, o famoso jornalista e apresentador escreveu um artigo sobre o longa intitulado "O Cômico e o Cósmico" em seu blog no portal G1. E me chamaram a atenção as suas seguintes palavras:
"O filme mexeu tanto comigo que me fez reconsiderar até mesmo minha posição com relação à fé. Ela é um pouco complexa (e indefinida) demais para eu poder dividi-la hoje aqui com você, mas, apenas para continuar a discussão, digamos que eu já tinha resolvido que fé era uma coisa que não faria parte da minha vida. Mas aí chega Malick e me reapresenta a Graça Divina como o único amor que de fato pode nos salvar – como não me sentir cutucado com isso? As perguntas que Jack – e eventualmente seu pai e sua mãe – colocam ao Criador são longe de ser tolas, ou simplesmente retóricas. São pontuais e indispensáveis para nos fazer pensar na cena que estamos vendo – e nos provocar por muito tempo depois que saímos do cinema."
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Um filme que aponta para o Alto e potencializa nossa percepção do influxo da Graça |
Cenas de espiritualidade no filme Amor Pleno:
https://www.youtube.com/watch?v=cPnFThIH7Qo
Jó
consolado
(Adélia Prado)
Desperta, corpo cansado;
louva com tua boca a cicatriz perfeita,
o fígado autolimpante,
a excelsa vida.
Louva com tua língua de argila,
coisa miserável e eterna,
louva, sangue impuro e arrogante,
sabes que te amo; louva, portanto.
A sorte que te espera
paga toda vergonha,
toda dor de ser homem.
louva com tua boca a cicatriz perfeita,
o fígado autolimpante,
a excelsa vida.
Louva com tua língua de argila,
coisa miserável e eterna,
louva, sangue impuro e arrogante,
sabes que te amo; louva, portanto.
A sorte que te espera
paga toda vergonha,
toda dor de ser homem.
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Só está apto a acolher a Graça e comer do fruto da Árvore da Vida quem estiver apto a passar pela provação de Jó |
Excerto de "Os Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski, Parte II, Livro Sexto, Capítulo I, b:
“Havia na terra de Hus um varão
justo e piedoso, que possuía muitas riquezas, tanto em camelos como em ovelhas
e jumentos. Os seu filhos se divertiam, e ele, que os amava muito, rogava a
Deus pelos filhos, temendo que tivessem pecado ao divertir-se. E eis que o
diabo se aproxima de Deus, juntamente com os filhos de Deus, e diz ao Senhor
que ele percorrera toda a terra, por cima e por baixo. Viste o Meu servo Jó?,
pergunta-lhe Deus, com muitos louvores ao seu santo servo.
O diabo sorriu: Entrega-me o teu servo e verás que ele murmurará contra ti e maldirá o teu nome. Então, Deus entregou ao demônio o seu justo, que ele tanto amava. O diabo feriu os seus filhos e o seu gado e destruiu as suas riquezas com a rapidez do raio. Jó rasgou as suas vestes e atirou-se ao solo exclamando: Saí nu do ventre de minha mãe e nu voltarei à terra. Deus me deu e Deus me tira tudo. Bendito seja o nome do Senhor, agora e sempre, pelos séculos dos séculos!’ [...]
O diabo sorriu: Entrega-me o teu servo e verás que ele murmurará contra ti e maldirá o teu nome. Então, Deus entregou ao demônio o seu justo, que ele tanto amava. O diabo feriu os seus filhos e o seu gado e destruiu as suas riquezas com a rapidez do raio. Jó rasgou as suas vestes e atirou-se ao solo exclamando: Saí nu do ventre de minha mãe e nu voltarei à terra. Deus me deu e Deus me tira tudo. Bendito seja o nome do Senhor, agora e sempre, pelos séculos dos séculos!’ [...]
Quanta grandeza e que mistério
inconcebível! Ouvi muitas vezes os detratores dizerem: ‘Como pôde o Senhor
entregar ao demônio o mais amado de seus santos, tirar-lhe os filhos e enchê-lo
de chagas, a tal ponto que ele tirava o pus com o caco de uma telha? E tudo
isso para quê? Apenas para se vangloriar diante de Satanás: Vê o que é capaz de
suportar o meu santo por amor a Mim!’
– Mas é isso que constitui a grandeza do drama, esse encontro da efêmera aparência terrestre com a verdade eterna. Aqui o Criador, aprovando a sua obra, como nos primeiros dias da criação, olha para Jó e novamente se regozija. E Jó, louvando o Senhor, serve não só a ele, mas a toda a sua criação... [...]
– Mas é isso que constitui a grandeza do drama, esse encontro da efêmera aparência terrestre com a verdade eterna. Aqui o Criador, aprovando a sua obra, como nos primeiros dias da criação, olha para Jó e novamente se regozija. E Jó, louvando o Senhor, serve não só a ele, mas a toda a sua criação... [...]
É como a representação do mundo do
homem e de seu caráter, tudo explicado para os séculos dos séculos. E quantos
mistérios resolvidos! Deus restabelece Jó em sua posição primitiva e dá-lhe
novas riquezas. Passam muitos anos e eis que ele tem novos filhos, a quem
dedica seu amor. Senhor!
Como podia ele amar esses novos filhos, depois de haver perdido os outros? A lembrança dos primeiros permite que ele seja completamente feliz, por mais que os novos filhos lhe sejam caros? Mas isso é possível, sim: a antiga dor transforma-se misteriosamente e pouco a pouco numa doce e comovida alegria; a ardência do sangue juvenil é substituída por uma serena velhice. Bendigo diariamente o erguer do sol, e, como outrora, o meu coração canta um hino em seu louvor, porém amo muito mais o crepúsculo, os seus longos raios oblíquos e, com eles, as doces e ternas recordações, as imagens queridas e de toda a minha longa vida bem-aventurada – tudo isso dominado pela verdade de Deus, que apazigua, reconcilia e absolve.”
Como podia ele amar esses novos filhos, depois de haver perdido os outros? A lembrança dos primeiros permite que ele seja completamente feliz, por mais que os novos filhos lhe sejam caros? Mas isso é possível, sim: a antiga dor transforma-se misteriosamente e pouco a pouco numa doce e comovida alegria; a ardência do sangue juvenil é substituída por uma serena velhice. Bendigo diariamente o erguer do sol, e, como outrora, o meu coração canta um hino em seu louvor, porém amo muito mais o crepúsculo, os seus longos raios oblíquos e, com eles, as doces e ternas recordações, as imagens queridas e de toda a minha longa vida bem-aventurada – tudo isso dominado pela verdade de Deus, que apazigua, reconcilia e absolve.”
que massa
ResponderExcluirAnálise perfeita.
ResponderExcluirA melhor critica do filme que já vi. Não é perfeita porque isso é impossível, já que o filme aborda sobre tudo, expressando como pano de fundo toda uma cosmovisão. Tudo que diz respeito à existencia humana pode ser estudado nesse filme. Parabéns e obrigado pelo trabalho.
ResponderExcluirSurpreendentemente, de primeira, acertei nas minhas acertações a respeito das cenas que estava assistindo, com o decorrer do filme, fazendo comentários a minha esposa, que assistia comigo.
ResponderExcluirÉ a primeira vez que sei da existência deste filme e o assistindo com minha esposa, este filme me deixou profundamente intrigado e o assisti até o fim, de raiva e por querer saber que loucura de filme era aquele.
Fiquei de fato, espalhafatado com o filme, que parecia ter sido feito por um louco, sem pé sem cabeça, por isto, fui pesquisar comentários e achei neste Blog, a melhor crítica e de forma, construtiva e simplesmente racional e preciso como um bisturi.
A partir de ler a narração deste blog sobre o filme...
Fiquei feliz, com o texto que li aqui, pois que, foi de encontro com tudo o que dissertei para minha esposa.
E dei um Eureka com todo o ar dos pulmões!!
É claro que o ponto de vista do filme, vai depender do grau de religiosidade de cada um, do grau intelectual, de sabedoria e virtudes.
Eu pessoalmente, o aliei as minhas concepções de vida, como admirador e estudioso da Ciência Espírita, e por gostar de filosofias, ciências e religiões.
Gostei muito da análise. Concordo em vários pontos e esclareceu muitos outros. Parabéns também por agregar informações e fontes sobre os temas que o autor destacou. Excelente!
ResponderExcluirMudou minha percepção de Deus.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSou apaixonada pelo filme, e cada ano que passa assisto, sozinha, num silencio total, e digo que cada vez que o vejo entendo mais...
ResponderExcluirBelíssima obra, acredito que não terá outro filme melhor do que esse.
Na época estava estudando o Kardecismo, juntou o bom com o agradável.
Será que a interpretação mais correta não seria da mãe ser a graça e o pai ser a lei de Deus? Acredito que até se encaixaria melhor na sua análise
ResponderExcluirCara, sensacional, meus parabéns mesmo.. Deus é bom em todo o tempo!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirJó é um livro icônico da Bíblia, não somente por ser um dos mais aclamados e belos, além de ser o mais antigo, mas tambem, de forma simplista, explicar o sentido da existencia do pequenino homem, provido de sentimentos e dúvidas tão profundas, em um Universo tão vasto e bonito: o livro revela o ser humano como um ser infinitésimo, frágil e insignificante no Universo, mas tambem o quanto somos extraordinários e maravilhosos, o ápice e a cerne dessa existência, o sentido desse Mundo existir!
ResponderExcluirParabéns por esse execelente! Fantático!
Muito boa sua análise, me ajudou muito a entender o filme! Obrigada
ResponderExcluirPerfeito!
ResponderExcluirdifícil compreender no primeiro momento. Complicado entende-lo mesmo depois disso.
ResponderExcluirPutz! Acabei de ver... preciso ver mais , pelo menos 2 vezes
ResponderExcluirBrilhante análise! Esse filme nos remete aos nossos próprios questionamentos.Penso que por causa disso,quando termina fica aquela sensação de vazio, tristeza. Não sei bem definir.
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