terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma apreciação política da obra Desvio Para o Vermelho, de Cildo Meireles


Constituída por três ambientes articulados entre si, a instalação Desvio para o Vermelho de Cildo Meireles foi concebida em 1967, mas sua composição final, exibida a partir de 2006 no Centro de Arte Contemporânea Inhotim, foi concluída apenas nos anos 80. 

O primeiro dos três espaços que compõem a obra, denominado Impregnação, consiste num cômodo repleto de móveis, utensílios, quadros artísticos e objetos diversos que excitam a sensibilidade visual pela dominância total da cor vermelha em todos eles. O vermelho aparece em diferentes tons, mas todos os objetos são, em alguma medida, vermelhos. À primeira vista, a considerar pelo sofá, pela mesinha próxima a ele, pelos quadros e pelas estantes, quem adentra este primeiro ambiente pode pensar que se trata de uma sala de estar. Uma sala incomum, um tanto exótica devido ao vermelho impregnado em tudo, mas uma sala.

Porém, conforme se atenta para os objetos individualmente, percebe-se que o cômodo contém coisas que não se encaixam numa sala, como uma geladeira, um guarda-roupa e objetos de escritório. O que os objetos têm em comum não é o fato de pertencerem a uma mesma categoria doméstica, mas sim a cor que os torna quase indistinguíveis à primeira vista, apesar de a “vermelhidade” estar mais presente em uns do que em outros, sendo que alguns dos objetos são de um vermelho que tende para a cor laranja. Como se lê na descrição da instalação, “a cor satura a matéria”, transformando-se ela mesma em matéria.

O primeiro ambiente pode remeter à homogeneização gerada por uma ideologia totalizante, à relação passional que “vermelhifica” tudo o que envolve a vida dos amantes ou ao sangue humano que deu àqueles objetos sua forma ou que dá a eles algum sentido no mundo humano, que os faz objetos de afeto, importantes ou vitais para alguém. Uma vez que o design de muitos dos objetos ali expostos incorpora claramente o estilo dos anos 60, 70 e 80, sendo que alguns deles, como a máquina de datilografia, sequer são usados em nossos dias, poder-se-ia remetê-los também a circunstâncias históricas específicas. O observador poderia imaginar tratar-se de uma referência às residências dos convictos socialistas da finda Alemanha oriental, da extinta União Soviética ou mesmo de algum socialista ocidental cujas paixões ideológicas somadas ao contexto da Guerra Fria contribuem para “vermelhificar” tudo ao seu redor.

São muitas as interpretações possíveis, uma vez que não há, em toda a instalação, um símbolo ou ícone que dê um sentido óbvio à obra. A interpretação é aberta justamente porque não se detecta uma intencionalidade clara do artista, e essa é uma das características próprias da arte contemporânea. O painel descritivo da instalação de Meireles nos faz notar que qualquer lógica que se queira estabelecer entre os três ambientes que a compõem é artificialmente elaborada pelo intérprete, não é inerente à obra, uma vez que a obra, em si, apenas proporciona a criação de “uma série de falsas lógicas que nos devolvem sempre a um mesmo ponto de partida”.
No segundo ambiente da instalação, Entorno, encontramos um cômodo escuro, sem iluminação própria e com piso negro. Conta-se apenas com a iluminação que vem do ambiente anterior. Neste segundo espaço, vemos logo ao chão uma pequena garrafa deitada e uma tinta vermelha que sugere um volumoso líquido escarlate que parece ter sido entornado por aquela garrafinha caída. Conforme se avança Entorno adentro, acompanhando o trajeto do líquido rubro entornado, a escuridão aumenta e o líquido se torna mais caudaloso, como se fosse formar um riacho. Poder-se-ia interpretar que a garrafa é um dos muitos objetos pertencentes à casa impregnada de vermelho, mas que, por alguma razão enigmática, caiu numa dimensão mais interna que o cômodo iluminado e fez vazar a sua “vermelhidade” para as profundezas de uma escuridão mais íntima que o próprio ambiente doméstico.
Por fim, já em escuridão total, chega-se ao terceiro ambiente: Desvio. Este último cômodo consiste num espaço de quase total penumbra, no fundo do qual uma fraca luz ilumina apenas uma velha pia de banheiro que está um pouco torta na parede, inclinada para um lado. Nela, jorra de uma torneira um líquido rubro sobre a louça branca toda respingada de algo que, à primeira vista, lembra resíduos de sangue coagulado. Desvio lembra um cenário de filme de horror; remete à violência. O “sangue” que jorra da torneira nos faz pensar em crimes, ou até em grandes massacres.

E, se quisermos estabelecer uma relação com o primeiro espaço, com a casa impregnada de vermelho, poderíamos imaginar que aquele “sangue” que jorra na obscuridade dos “fundos da casa” simboliza as carnificinas causadas pelo mesmo totalitarismo que “vermelhifica” todo o primeiro ambiente. Poderíamos supor que mentalidade “vermelhificadora” que parece inofensiva e até charmosa no primeiro ambiente é a causa do “sangue” que escorre na escuridão do último. Ou, ainda, poderíamos fantasiar que o espaço da Impregnação, com seus objetos domésticos banais impregnados por uma obsessão monocrômica, representa a banalidade da vida de um idealista com potencial genocida; a vida ordinária de um ideólogo que, às claras, passa os dias normalmente em meio a objetos banais, mas que, ocultamente, contribui para derramar o “sangue” que jorra na sinistra pia que jaz na escuridão. Aquela poderia ser, talvez, a casa da família de Adolf Eichmann, o oficial nazista que surpreendeu Hannah Arendt por ser um homem tão banal e, ao mesmo tempo, capaz de coisas tão horríveis. Ou poderia ser a casa de qualquer militante político que, prenhe de ideais utópicos, aceite tranquilamente – como os jacobinos, os bolcheviques ou Eric Hobsbawm – que derramar um pouco de sangue se justifica quando se tem em vista um futuro "livre", mais "justo" e "igualitário". 

Um comentário:

  1. exceto que sua análise tá toda errada, porque o Cildo é socialista e essa obra é uma crítica a ditadura militar.

    ResponderExcluir