O existencialismo antropológico levanta um problema filosófico interessante e, em certo sentido, bastante grave.
Um problema que pode ter implicações sociopolíticas surpreendentemente sérias. Caso o leitor não esteja a par da oposição conceitual entre a antropologia filosófica essencialista e a antrop. filosófica existencialista, sugerimos uma pesquisa prévia por textos que sirvam de leitura introdutória sobre o assunto e, depois, acompanhe a nossa reflexão nos parágrafos seguintes.
Penso que, em grande parte dos casos, a admissão do
existencialismo por muitos estudantes decorre de certa confusão vigente entre a noção clássica de
essência e um determinismo antropológico de tipo fatalista. A concepção clássica
de essência define, mas não acorrenta, categoriza, mas não determina. Ela não nega
a possibilidade de autodeterminação. Do contrário, os medievais jamais poderiam
tê-la conciliado com a noção de livre arbítrio. Se nossos “veneráveis”
acadêmicos (pffrr) tratassem de desfazer essa confusão entre essencialismo e
determinismo, penso que o existencialismo perderia muita força. Mas,
infelizmente, não é do inter-esse deles fazer nenhuma distinção que enfraqueça
certa práxis que é o escopo mal disfarçado das imposturas intelectuais todas.
Parece-me que a moção profunda que nutre o existencialismo é
uma grande aversão a qualquer tipo de teleologia. Isto é, como o
existencialista não quer concordar, por exemplo, com os filósofos antigos de
herança socrática (aceitando a vida racional e virtuosa como finalidade última
do homem), nem com os medievais (assumindo que a razão última de ser de todo
homem é a plena união com o seu Criador), ele manda às favas toda concepção de
essência porque sabe que ela implica numa ideia de causa final, da qual ele quer
fugir custe o que custar. Então, ele nega a essência pra fugir da teleologia e
enfatiza o “fazer-se na existência” para se justificar e viver sem ter que se
preocupar em fazer qualquer esforço de adequação a qualquer finalidade
essencial.
Além do mais, considero o existencialismo uma noção
antropológica politicamente perigosa, uma vez que, ao negar uma essência comum
a toda pessoa humana, pondo a ênfase naquilo que cada um "constrói"
de si na própria história, pode-se acabar negando, junto com o estatuto
ontológico de cada homem, seus direitos e deveres intrínsecos.
Imagino que, ao apoiar o nacional-socialismo alemão,
Heidegger consolava sua consciência persuadindo-se de que os judeus eram meras escolhas
existenciais de ganância, avareza e exploração do povo germânico, e não
essências humanas intrinsecamente merecedoras de respeito, de liberdade e de
vida!
Outro dia eu colocava o seguinte problema para uma das
turmas para as quais leciono: um infrator da lei reincidente e culpado de crime
grave com requintes de crueldade deve receber uma punição exatamente
proporcional aos males que ele causou (isto é, considerando apenas suas
escolhas e atos, sua trajetória existencial criminosa) ou a pena não pode ser
proporcional aos crimes cometidos porque o criminoso também é um ser (!) humano
essencialmente digno de direitos, a despeito do que tenha feito?...
Bem, se não há uma "essência humana" e o homem
nada mais é do que a soma de suas escolhas e ações, logo nada há de
intrinsecamente sagrado ou especial em cada homo sapiens que o faça digno de
direitos. Se cada homo sapiens se faz continuamente na história e vai “sendo” sem ser definitivamente nada,
cada homo sapiens não é algo em si! E, se ele não é, não é essencialmente digno
de nada. E, aí sim, tem-se um pretexto forte para a marginalização daqueles que
fazem escolhas infelizes: prostitutas, travestis e viciados passam a ser vistos
como (e identificados com) as escolhas infelizes que fazem e não a partir do
que eles são essencialmente (seres humanos com direitos e responsabilidades).
Na verdade, penso que, diversamente do que os propagandistas do existencialismo sugerem, o que impera hoje na nossa cultura é justamente a visão
existencialista. Uma visão que me leva a olhar para o outro conforme o que ele faz ou
deixa de fazer (conforme o que ele “projeta de si”), e não a partir da
essencial humanidade inerente a cada outro semelhante a mim.
Outro dia, num
grupo do facebook, eu me escandalizava ao acompanhar um debate no qual pessoas “bem
intencionadas” defendiam a eliminação dos “habitantes” da chamada “cracolândia”.
Logo identifiquei o problema: eles estavam valorando a vida dos usuários de
crack pelo que estes fazem, pela desordem que geram e pelos muitos problemas
que causam à sociedade. Tive que lembrá-los que, a despeito de tudo isso, os pobres viciados são (!) mais do que seus atos de desordem e mais do que os problemas que geram. Mediante esta recordação, os debatedores se deram conta do absurdo de sua proposta inicial e deixaram de dizer estultices.
Mas, se ninguém reconhecesse um “esse” sagrado naqueles viciados desordeiros,
não sei qual argumento poder-se-ia invocar em seu favor. Para a sorte deles, ainda há no mundo quem acredite e valorize o ser em si, o caráter substancial e imutável, a essência...