sexta-feira, 14 de março de 2014

A História proibida

Olavo de Carvalho - Digesto Econômico


Carl Schmitt definia a política como aquele campo da 

atividade humana no qual, não sendo possível nenhuma 

arbitragem racional dos conflitos, só resta juntar os amigos 

partir para o pau com os inimigos. Invertendo a célebre 

fórmula de Clausewitz, a política tornava-se assim uma 

continuação da guerra por outros meios. Nessa perspectiva, 

o que quer que se dissesse a respeito deveria ser julgado 

não por sua veracidade ou falsidade, mas pela dose de 

reforço que desse aos “amigos” e pelo mal que infligisse aos 

“inimigos”.

Fidel Castro e Lula discursando em encontros do Foro de São Paulo

A quase totalidade da bibliografia nacional sobre o golpe de 

Estado de 1964 segue rigorosamente essa receita. A 

hipótese de discutir racionalmente os argumentos dos 

golpistas é afastada in limine como “extremismo de direita” 

ou como adesão retroativa ao movimento que, com forte 

apoio popular, derrubou João Goulart e inaugurou a era dos 

presidentes militares. A única função que resta para o 

historiador é, portanto, reforçar o elemento macabro na 

lista dos crimes de um dos lados e enaltecer os do outro 

lado como boas ações incompreendidas.


A universidade brasileira tem nisso uma das suas principais 

missões educacionais. Não espanta que para cumpri-la tenha 

tido de reduzir mais de cinqüenta por cento dos seus 

estudantes ao estado de analfabetismo funcional,[1] 

tornando-se assim uma organização criminosa empenhada 

na prática da fraude em grande escala. 


A ciência política começou quando Sócrates, Platão e 

Aristóteles inauguraram a distinção entre o discurso do 

agente político e o do observador científico. Essa distinção 

não poderia ser mais clara nem mais incontornável: o 

primeiro destina-se a fazer com que determinadas coisas 

aconteçam, o segundo a compreender o que acontece. O 

próprio agente político, quando fala entre amigos, tem de 

ser um pouco cientista para dar a eles uma visão realista do 

estado de coisas antes de lhes dizer o que devem fazer. 

Levada às suas últimas conseqüências, a regra schmittiana 

resulta em suprimir toda possibilidade de um conhecimento 

objetivo do estado de coisas e em meter os amigos numa 

enrascada dos diabos. Ninguém praticou isso com mais 

dedicação do que os comunistas, que por isso mesmo 

acabaram matando mais comunistas do que todas as 

ditaduras de direita reunidas e somadas. 

Vítimas do Massacra de Katyn, na Rússia socialista

Até hoje ninguém contestou satisfatoriamente a minha 

assertiva de que nos anos 30-40 do século passado um 

marxista de estrita observância teria maior probabilidade 

estatística de sobreviver na Espanha de Franco ou no 

Portugal de Salazar do que em Moscou.


Quase toda a bibliografia nacional sobre o golpe de 1964 e 

sobre o regime militar que se lhe sucedeu só tem, portanto, 

o valor de um documento bruto sobre a visão que uma das 

facções em luta tinha (e tem) dos acontecimentos. Como 

estudo científico-objetivo, não vale nada. Que alguns 

poucos livros se oponham a essa uniformidade consensual 

não melhora em nada a situação, pois expressam antes a 

reação enfática de uma minoria indignada do que um sério 

desejo de compreender o que se passou. E a desproporção 

entre ataque e defesa se torna ainda mais significativa 

porque – notem – os governos militares, com todos os 

recursos que tinham à mão, não espalharam um volume de 

propaganda anti-Goulart – ou anticomunista -- que chegasse 

a um milésimo do que se escreveu e publicou contra eles 

depois que foram alijados do poder. 



Guerrilheiro Carlos Lamarca


Mesmo em plena ditadura,

a produção de livros e jornais contrários ao 

regime, muitos abertamente pró-comunistas, já 

ultrapassava de longe o volume modesto da propaganda 

oficial, sem contar o fato de que esta se limitava a 

patriotadas genéricas e inócuas sem nenhum teor de ataque 

ou denúncia. O governo, enfim, cedeu à esquerda o 

monopólio do uso da linguagem, e o fez precisamente nos 

anos em que os setores mais hábeis do movimento 

comunista, em vez de se suicidar nas guerrilhas, liam 

Antonio Gramsci e se empenhavam em ocupar espaços na 

mídia e nas universidade para aí empreender a grande 

guerra cultural contra um adversário que a ignorava por 

completo.

É inteiramente normal que no dia seguinte à queda de um 

regime ele seja demonizado, mas é ainda mais normal que a 

passagem do tempo favoreça abordagens mais realistas e 

equilibradas. Este ano o golpe de 1964 completa meio 

século de história, e não só a indústria da vituperação 

continua cada vez mais próspera, alimentada agora por uma 

cornucópia de verbas estatais, mas o simples impulso de 

sugerir alguma moderação ou de pedir equanimidade na 

averiguação dos delitos de parte a parte é recebido como 

virtualmente criminoso e digno de punição. Muitos acusam 

nele, abertamente, a preparação de um outro golpe, o 

anúncio de uma nova ditadura, e, com base nesse 

hiperbolismo forçado até o último grau, legitimam o uso de 

meios ditatoriais para evitá-la.

Os genocidas socialistas Mao Tsé-Tung e Joseph Stálin

Num país onde setenta mil cidadãos são assassinados por 

ano, a morte de quatrocentos terroristas meio século atrás 

é ainda alardeada como o mais terrível – e o mais recente – 

dos traumas históricos possíveis. Chega-se mesmo a 

exclamar que o Brasil só não encontrou o caminho da 

perfeita democracia porque os “crimes da ditadura” ainda 

não foram suficientemente investigados e denunciados.[2]


Nessas condições, não é de estranhar que aspectos 

fundamentais da história daquele período fossem varridos 

para baixo do tapete, sufocados e proibidos, como se nunca 

tivessem existido e como se mencioná-los fosse o maior dos 


crimes. Eis alguns exemplos:


1. Qual a dimensão real da ameaça comunista no Brasil dos 

anos 60? A norma geral é proclamar, a priori, que essa 

ameaça era inexistente ou irrisória. Mas as mesmas pessoas 

que assim dizem são as primeiras a apontar o grande número 

de oficiais comunistas e pró-comunistas que o novo regime 

expulsou das Forças Armadas. São também as primeiras a 

cantar as glórias do esquema guerrilheiro que Fidel Castro 

havia espalhado por todo o continente americano. Conta-se 

entre lágrimas a história da Operação Condor, mas evita-se 

cuidadosamente mencionar que ela foi apenas uma reação 

tardia à fundação da OLAS, a Operação Latino-Americana de 

Solidariedade, comando-geral das guerrilhas no continente, 

que já havia matado milhares de pessoas quando os 

governos da região decidiram juntar esforços para combatê-

la.

Socialistas cubanos numa cena que parece ser a preparação para um fuzilamento

2. À profusão de investigações e denúncias sobre a ação da 

CIA no Brasil, entremeadas de mitos e lendas, corresponde, 

em simetria oposta, o total desinteresse ou a proibição 

tácita de averiguar a presença da KGB no país na mesma 

época. A abertura dos arquivos de Moscou, que tão 

profundamente modificou o panorama da sovietologia no 

mundo, foi recebida no Brasil como uma obscenidade da 


qual não se deveria falar.

A estrela vermelha e a foice-e-martelo, símbolos do totalitarismo soviético

3. A balela de que as guerrilhas surgiram em reação à 

derrubada do presidente Goulart continua sendo repetida 

com a maior sem-cerimônia, mesmo sabendo-se que desde 

1961 já havia no Brasil guerrilhas subsidiadas e orientadas 

pelo governo cubano. Nesse ponto, aliás, o simples fato de 

que o presidente Goulart, recebendo em mãos as provas do 

que se passava, escondesse tudo e remetesse em segredo a 

Fidel Castro em vez de mandar investigar essa ostensiva 

intervenção estrangeira armada, já bastava para tornar sua 

derrubada inevitável e até obrigatória.[3] No entanto, até 

hoje o golpe é carimbado como um ato de força “contra um 

presidente legalmente eleito”, como se Goulart tivesse sido 

derrubado por ter sido eleito e não por ter cometido um 


crime de alta traição.

Fidel e soldados cubanos

4. Qual foi exatamente a participação de exilados e de 

outros comunistas brasileiros na polícia política de Fidel 

Castro? Se o sr. José Dirceu foi oficial do serviço secreto 

militar cubano, é quase impossível que ele tenha sido uma 

exceção solitária. Quantos comunistas brasileiros foram co-

responsáveis por matanças e torturas de cubanos?

Guerrilheira Dilma Rousseff ao lado de um fuzil


5. Passaram-se doze anos desde que divulguei neste país o 

livro, publicado uma década e meia antes disso, em que o 

chefe do escritório da KGB no Brasil, Ladislav Bittman, 

confessava ter falsificado documentos para induzir a mídia 

local, com sucesso, a acreditar que o governo dos EUA havia 

planejado e orientado o golpe militar. Desde então nem um 

único jornalista ou historiador se interessou sequer em ler o 

livro, quanto mais em tentar uma entrevista com Bittman ou 

uma averiguação nos arquivos soviéticos. São, no total, 


vinte e sete anos de ocultação proposital.

Livro no qual o desertor da KGB L. Bittman faz revelações sobre sua atuação no Brasil


6. No mesmo livro, Bittman afirmou que a KGB tinha na sua 

folha de pagamentos, em 1964, quase uma centena de 

jornalistas brasileiros. Alguém se interessou em investigar 

quem eram eles? Encobertos sob o silêncio obsequioso de 

seus colegas e dos empresários de mídia, aqueles dentre 

eles que não morreram estão decerto em plena atividade, 

mentindo, ocultando e falsificando.


Esses seis exemplos bastam para evidenciar que a história 

oficial do golpe de 1964 é criminosamente seletiva, 

recortada para servir de instrumento de propaganda e não 

para esclarecer alguma coisa. É a historiografia schmittiana 

em ação, ajudando os amigos e assassinando as reputações 

dos inimigos.