sábado, 14 de março de 2015

O vestido controverso e o problema filosófico da Verdade




Na última semana de fevereiro passado, uma discussão acerca da cor de um vestido fotografado na Grã Bretanha e postado na internet criou discussão em praticamente todos os países do mundo com acesso às redes sociais online. A polêmica se deu porque muitas pessoas, ao verem a foto originalmente postada (acima, na imagem do meio) diziam que o vestido era branco e dourado, enquanto outras viam-no azul e preto e outras, ainda, afirmavam ver na peça de vestuário cores como marrom, lilás, bege, entre outras.

Os meios de comunicação, aproveitando a extensa e rápida propagação da controvérsia, trataram de chamar seus experts preferidos para oferecer explicações sobre a razão das divergências entre as pessoas em torno do vestido. Para elucidar o mistério, foram convocados oftalmologistas, psicólogos, neurologistas, neurocientistas e também psiquiatras. 

Dentre as possíveis explicações por eles apresentadas, a mais convincente e aparentemente exata mostra que o cérebro humano, ao tentar interpretar as coisas, suas formas e cores a partir do contexto no qual elas estão inseridas, acaba enganando-se em alguns casos. Assim, num ambiente com pouca luminosidade (como o quarto escuro da foto abaixo), facilmente podemos confundir as formas dos objetos, nos equivocar sobre a cor de cada um deles e até nos assustar com alguma coisa inofensiva. 


No exemplo da figura abaixo, embora as letras A e B estejam inseridas em quadrados que tem exatamente a mesma cor, a sombra supostamente projetada pelo objeto verde sobre B faz-nos imaginar que B é de cor mais clara do que A quando, na verdade, eles tem o mesmo tom de cinza (para conferir, salve a imagem e use a ferramenta de conta-gotas do Paint para extrair a cor de ambos os quadrados e compará-las).

Por fim, revelou-se então que as muitas pessoas que viam o vestido nas cores branca e dourada, ou com outras cores que não azul e preto, estavam sendo literalmente enganadas pelo próprio cérebro. Este, ao tentar compensar a incidência da forte luz atrás do vestido e calcular sua cor real naquele contexto, simplesmente apostava nas cores erradas. Tal como ocorre com a imagem do tabuleiro acima, nosso cérebro faz uma leitura conjuntural, evitando isolar o objeto do seu contexto (um recurso que, em muitos casos, é até útil), mas acaba errando. 

As pessoas que viram o vestido da foto nas cores azul e preta acertaram simplesmente porque possuem um cérebro que desconsiderou a incidência da luz de fundo, talvez por notar que ela não poderia alterar a percepção da cor real do vestido. Entretanto, não faltaram "especialistas" de mentalidade subjetivista para dizer que ambos os observadores [tanto os que viram azul e preto quanto os que viram branco e dourado] estariam certos porque "o mundo e as coisas são como nós os vemos". E essa opinião dá margem para uma ampla discussão sobre o problema filosófico da verdade.

A questão da verdade tem uma longa tradição na história do pensamento ocidental. E não apenas porque já era debatida pelos filósofos da Grécia antiga, mas também porque a espiritualidade religiosa mais influente do Ocidente, a cristã, valorizou-a imensamente. No versículo 32 do capítulo VIII  do Evangelho de São João, Jesus diz: " conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8,32). O filósofo Platão contrapunha a doxa (opinião particular de cada homem) à episteme (o conhecimento verdadeiro). Mas Protágoras de Abdera, tido por Platão como mero sofista, alegava que "o homem é a medida de todas as coisas" e, portanto, é dele que advém qualquer pretensa verdade sobre as coisas e não delas mesmas, uma posição subjetivista e relativista que parece influenciar muitos acadêmicos hoje. 

Aristóteles definia sua Metafísica como "ciência da verdade" (Met. II, 993 b 20). E o filósofo escolástico São Tomás de Aquino propunha uma noção de verdade como adaequatio intellectus et rei ("adequação entre o intelecto e a coisa" - De Veritate, q.1 a.1). Assim, a valorização da busca de uma verdade certa a respeito das coisas chegou até o período moderno sem perder totalmente a sua força. Abaixo vemos, por ex., o brasão da Universidade de Harvard, fundada no séc. XVII, que ostenta a palavra VERITAS ("Verdade", em latim), como que indicando-a como o escopo de toda atividade de pesquisa e estudo.


Brasão da Universidade de Harvard

Mas, afinal, a verdade é subjetiva (depende do sujeito interpretante) ou objetiva (diz respeito ao próprio objeto analisado)?... Se assumirmos que ela é objetiva, isto é, que a verdade está no objeto independentemente de que o observe e julgue, temos que admitir que o vestido da foto do meio no topo desta postagem é azul e preto, pois a própria dona do vestido, que tirou a polêmica foto, confirmou essas cores. Mas se aceitarmos que ela é sempre subjetiva, isto é, que depende da perspectiva do observador, então teremos que aceitar que o vestido em questão é tanto azul e preto quanto branco e dourado, o que não nos parece razoável, uma vez que, no objeto, só existem duas cores.

O mais exato, no que diz respeito à verdade, é assumir que ela pode ser tanto objetiva quanto subjetiva, às vezes absoluta, outras relativa, a depender do seu objeto e do que se afirma a respeito dele. Exemplos de afirmações que um sujeito pode fazer e o respectivo valor de verdade de cada uma delas:

"As noites de sábado são tristes." - Temos aqui uma afirmação com valor de verdade subjetivo, uma vez que ela expressa uma percepção do sujeito que a emite e não algo que diga respeito ao próprio objeto, que são as noites de sábado. As noites de sábado são apenas noites, nem tristes, nem alegres. Nelas, algumas pessoas podem se entristecer, mas muitas outras se alegram.

"O corpo humano morre se for privado de oxigênio por mais de 15 minutos." - Aqui temos uma realidade que diz respeito ao próprio objeto "corpo humano", independente do sujeito que diz essa frase, do tempo, do lugar ou do treinamento adquirido pelo humano em questão. Portanto, trata-se aqui de uma verdade objetiva.

"Os quadros de Picasso são todos belos." - Outra vez, uma proposição baseada numa percepção subjetiva, num gosto particular, até porque muitas pessoas não compreendem a razão de as pinturas de Picasso valerem tanto dinheiro, já que não veem beleza alguma nelas.

"A água pura congela a 0ºC e ferve a 100ºC sob pressão de 1 atm." - Uma realidade que diz respeito à própria natureza do objeto "água pura". Portanto, uma verdade objetiva.

"A casca da acerola madura tem cor avermelhada." - Novamente, é a natureza do objeto que testemunha esta verdade. É claro que a cor captada pela visão humana depende da saúde desta e da incidência da luz sobre o objeto. Isto é, dentro de uma gaveta fechada ou de um quarto escuro todos os objetos são pretos e, sob luz amarela, objetos vermelhos podem se tornar alaranjados. Mas quando falamos de "cor real" estamos aceitando a verdade de que o objeto, em si, possui substâncias cuja pigmentação, ao refletir luz branca e ser captada por olhos saudáveis, revelará uma cor inerente à própria pigmentação do objeto.

Como exemplo de verdades relativas, podemos citar:

"A democracia é sempre a melhor forma de governo." - Para percebermos a relatividade dessa noção basta recordarmos que Adolf Hitler, que foi o maior responsável pela 2ª Guerra Mundial e pela execução de milhões de inocentes, foi eleito democraticamente pelo povo germânico, assim como o atual ditador socialista venezuelano Nicolás Maduro.





"O câncer é uma doença fatal." - Esta é uma verdade relativa porque creio que todos conhecemos exemplos de pessoas que sobreviveram a um câncer.

"A liberdade e a igualdade são sempre benéficas." - Pense na liberdade de um serial killer, de um terrorista suicida ou na igualdade dos agricultores ucranianos sob Stálin, dos camponeses cambojanos sob Pol Pot ou dos chineses sob Mao e você concluirá que esta verdade é relativa, uma vez que existem casos em que a liberdade e a igualdade trazem males horríveis.

E as verdades absolutas?...

Bem, se ninguém puder negar, em qualquer tempo ou lugar, que as somas dos ângulos internos de um triângulo resulta 180º, que a raiz quadrada de 25 é  igual a 5, que a cana-de-açúcar tem em si o potencial para fazer fotossíntese e produzir sacarose (embora dependa de condições ideais para efetivá-lo) ou que o pensamento de um ser implica que sua existência seja necessária (lembrando Descartes), creio que podemos chamar essas verdades de absolutas.


Portanto, sempre que você ouvir alguém dizer que "não existe verdade absoluta" ou que "todas as verdades são relativas", não acredite. Isso é pura bobagem.

Um dos "especialistas" convidados por um programa da TV Globo também se referiu às discussões das pessoas sobre o vestido como "comportamento de manada", como se cada internauta que debateu nas redes sociais a respeito da imagem o tivesse feito por puro impulso de imitação, pela mera tendência de seguir uma onda comportamental e falar da mesma coisa sobre a qual os demais estavam falando. Este juízo também não passa de uma estultice preconceituosa e pedante.

As pessoas se interessaram pelo caso do vestido e discutiram tanto sobre ele porque o ser humano interessa-se naturalmente pelo mistério, por tudo o que pareça inexplicável e desafie o consenso: isso faz parte da nossa não-declarada busca interior pela verdade e por sentido. O ser humano é, naturalmente, ansioso por descobrir e conhecer, embora nem sempre se disponha a fazer os esforços que a busca pelo conhecimento exige.