terça-feira, 10 de abril de 2018

Beleza física: bênção ou maldição?...

Será que ser considerado(a) belo(a) e atraente aos próprios olhos e aos olhos dos outros é realmente uma vantagem, uma dádiva invejável e um trampolim para ter sucesso na vida?...


A moça que, desde muito jovem, vê-se cortejada por vários rapazes e percebe que poderia escolher um namorado entre várias opções seria, de fato, uma sortuda?...

E o rapaz que, com frequência, recebe olhares, atenções e charmes das mulheres, é um afortunado?...

Em 2015, David Robson publicou um artigo no site da BBC Future falando sobre "o surpreendente lado ruim de ser bonito". Mas convém deixarmos as conclusões deste artigo para depois e fazer algumas reflexões prévias sobre o assunto:

Logo no começo da sua República, Platão nos ensina, através de um diálogo entre Sócrates e Céfalo, que a juventude, em virtude das paixões e ímpetos que lhe são próprios (como a vaidade, ou a pulsão sexual), pode ser um tipo de "déspota" na vida do homem. 

O jovem é impelido pelos desejos que o dominam na mocidade, dominado pelas paixões que lhe obstaculizam a aquisição da sabedoria, dificultando que ele se faça guiar mais pela razão do que pelos impulsos

Em uma fala, Sócrates atribui a sabedoria dos velhos à sua experiência acumulada, mas seu interlocutor sugere que ela também deve ser atribuída ao fato de que a velhice liberta o homem do jugo das paixões que o subjugam na mocidade. 

A cada dia que passa isso é menos verdade, pois os velhos de hoje, que cresceram já em anos de cultura decadente, raramente são de fato sábios e livres de suas paixões. Prolongar a juventude artificialmente, aliás, tem sido uma demanda crescente. 

De qualquer forma, porém, permanece válida a reflexão platônica sobre a utilidade de sermos livres das paixões. Vejamos um trecho das considerações de Céfalo:

"Bem me lembro de uma ocasião em que estava junto de Sófocles, o velho poeta, e alguém lhe perguntou: 'Como vais, Sófocles, no que diz respeito ao amor? És ainda capaz de estar com uma mulher?' E ele respondeu: 'Sossega, homem! Com a maior satisfação me livrei dele, como quem se livra de um déspota furioso e selvagem.' [...] Pois é certo que a velhice traz consigo uma grande paz e liberdade; quando se embota o acicate das paixões, sucede exatamente o que dizia Sófocles: libertamo-nos não apenas de um tirano, mas de muitos."

A ilusão da vaidade, embora típica da juventude,
pode nos subjugar em qualquer período da vida

Note-se que o indagador de Sófocles, ao falar de "amor", claramente não se referia à philia (amizade pura) ou ao ágape (amor oblativo), mas sim ao eros, às relações sexuais. 

E Sófocles lhe responde de modo surpreendente: em vez de lamentar-se, manifesta satisfação por já não estar sujeito à pulsão sexual. Quão oposta à mentalidade moderna é esta filosofia, não?...

Visitando outro dia em Curitiba uma exposição de pinturas e desenhos de Guido Viaro, finado artista ítalo-brasileiro, notei que as suas primeiras obras, suas obras de juventude, eram fortemente marcadas pela sensualidade, com muitos nus, embora não chegassem a ser explicitamente pornográficas. 

Porém, em suas obras posteriores, nas obras da maturidade, o mesmo artista dedicou-se a temas incrivelmente distintos das primeiras. Nas obras de sua velhice o pintor retratou sobretudo cenas bíblicas e representações clássicas da fé católica, como a Paixão de Cristo.

Essa mudança temática observada nas obras do artista em questão talvez nos permita concluir que, à medida que vamos envelhecendo, ou nos tornando mais sábios e temperantes, os nossos interesses e preocupações principais vão se desapegando de certa obsessão pelo que deleita o corpo, que já não impele à satisfação dos instintos como antes, e se dirigindo mais ao espírito. 

Os objetos principais dos pensamentos do homem maduro, com o tempo, vão se deslocando da carnalidade à espiritualidade. E isso traz maior paz, serenidade e capacidade para fazer escolhas mais acertadas. 

Assim, a tese (platônica) de que a juventude seria menos favorável à vida sábia do que a velhice - não apenas pela falta de experiência dos jovens, mas também pelos efeitos das paixões sobre eles - parece fazer muito sentido.

Mas o que tudo isso tem a ver com a beleza física?

Bem, as pessoas mais belas, sobretudo quando jovens, são mais suscetíveis às paixões e vaidades, justamente porque são mais desejadas e carregam consigo uma autoimagem, muitas vezes, erotizada também.

Narciso afogou-se por dar valor excessivo à sua beleza;
por pura vaidade perdeu a vida.

Bem, voltando ao artigo da BBC (que se baseou numa pesquisa feita nos EUA), ele sugere que as mulheres bonitas podem ser preteridas por outras menos belas numa seleção para cargos de autoridade. Parece que as beldades não transmitem autoridade ou não impõem muito respeito aos demais. 

Também aponta que um entrevistador pode rejeitar mais facilmente os candidatos a uma vaga de trabalho que forem do mesmo sexo e mais bonitos que o próprio entrevistador. E ainda que os médicos tendem a subestimar a gravidade dos problemas de saúde dos pacientes mais belos, e que pessoas com uma beleza muito intimidadora podem desencorajar os outros a interagirem com ela. 

É claro que o artigo também menciona as vantagens dos bonitões, que vão desde notas mais favoráveis nas avaliações escolares até salários mais altos no trabalho, sobretudo em postos onde a atratividade do funcionário favoreça a empresa. Mas deixa claro que as desvantagens também existem.

Mas, voltando a Platão, será mesmo que a beleza física, tal como a juventude, também poderia representar um empecilho para se ter uma vida sábia, prudente e realizada?... 

Será que a atratividade também dificulta a opção por caminhos e condutas que poderiam ser, no longo prazo, mais benéficos?... 

Será um corpo belo capaz de compensar por uma alma frívola e vazia?

Uma garota muito bela certamente será, desde cedo, muito mais assediada por homens - entre eles os mais egoístas, mentirosos, cafajestes, aproveitadores e toda sorte de patifes. Ela será mais cobiçada e terá dificuldades em ter relacionamentos duradouros, sinceros e que não sejam motivados unicamente pela sua beleza física e pelo prazer que esta proporciona.

Ao se sentirem desejadas o tempo todo, elas se envaidecem, dão excessiva importância a isso, gastam mais tempo e outros recursos para se exibir, manter ou aumentar a atratividade de sua aparência, e sofrerão muito mais se um dia perderem esta beleza por um trágico acidente ou doença.

O narcisismo hodierno fica patente, por exemplo, nas redes sociais

A beleza física também será um problema na hora de escolher um(a) companheiro(a) definitivo, pois pessoas belas tendem a rejeitar quem elas acham que "não está à altura" delas. Assim, facilmente assumem critérios errados, e podem facilmente trocar uma pessoa de beleza mediana, porém de caráter justo e sentimentos puros, por alguém belíssimo, mas de mau caráter, mentiroso e interesseiro. 

E se elas tiverem muitos casos passageiros antes de escolher alguém de valor para partilhar a vida, quando a "pessoa certa" surgir ela pode perder o interesse por conta do histórico excessivamente "rodado" do bonitão ou da beldade, ou por sua dificuldade de se manter num relacionamento estável com uma única pessoa.

Ao exibir com orgulho as suas carnes, o vaidoso não se lembra que
estará morto em algumas décadas; do seu corpo restarão apenas ossos e, depois, pó.

Pessoas muito belas e que se sentem muito desejadas podem facilmente se tornar egoístas, fúteis, orgulhosas e superficiais. O assédio insistente de outras pessoas atraentes do sexo oposto podem ainda levá-las a escolhas (encontros sexuais, "trabalhos" degradantes ou casamentos ruins) das quais elas muito se arrependerão depois. 

O poder de atração de uma pessoa parece ser inversamente proporcional à sua liberdade em relação à pulsão sexual. Pessoas muito atraentes tornam-se mais facilmente "escravas da carne" e da sensualidade.

Ao contrário, uma jovem de beleza média ou bastante desprovida de beleza, embora seja menos desejada, tem mais chances de encontrar alguém que a ame pelo que ela é na sua essência, pelo que ela manifesta do seu eu interior. Moças menos belas tem menos poder de conquista, mas também são mais livres.

O que de perto pode parecer apenas um cuidado de si,
com um olhar distanciado pode revelar uma vaidade estéril e mortífera.

Dentre os homens que certamente irão tentar conquistar as mais bonitas, figuram sobretudo aqueles que também são considerados muito bonitos e que sentem que poderiam possuir qualquer mulher que lhes aprouvesse, na hora em que quisessem. 

Assim, tanto elas quanto eles estão mais propensos a terem relacionamentos de laços fracos, muito mais carnais, mais impelidos pela atração física, e mais vazios espiritualmente, desprovidos de amor autêntico e de admiração pelas qualidades morais e espirituais do outro.

Depois, meninas muito belas estão mais vulneráveis a perderem a virgindade precocemente, entregando a qualquer um (geralmente ao mais gatão e arrojado da turma) o inestimável dom da pureza, que elas deveriam reservar unicamente para aquela pessoa que Deus destinou para a vida delas! 

Uma linda moça também pode ter um número maior de relacionamentos complicados - se motivados unicamente pela atração física -, e dificilmente poderá saber se a pessoa que ela tem junto de si a ama pelo que ela é na sua interioridade ou apenas pelo seu rostinho e corpo bonitos!

"Este é o espelho que não te engana"

Como o diálogo da República de Platão quase sugere, as "vantagens" sociais que a juventude e a beleza física trazem consigo também dificultam que as pessoas jovens e belas tenham aqueles valiosos momentos de insatisfação e de tristeza que nos fazem abstrair um pouco do mundo material e social e nos levam à reflexão ponderada sobre questões mais sérias e definitivas

Neste sentido, uma bela aparência pode ser mesmo um empecilho à filosofia, a uma vida criteriosa e regrada por aqueles necessários momentos de reflexão. 

Afinal, quem é muito belo e querido por todos pode sentir que tem "o mundo a seus pés", sobretudo se também tiver algum dinheiro. 

E, numa vida assim, muito satisfeita e acomodada com o que a natureza e a sorte lhe deram, pra quê refletir sobre coisas sérias, não é mesmo?...

Não é à toa que os santos aparecem muitas vezes com caveiras, como este São Jerônimo de Caravaggio. Elas os lembravam da sua mortalidade, inibindo o relaxamento e afastando qualquer orgulho e vaidade.

Pessoas muito belas também podem ser bem menos inclinadas à espiritualidade, a cultivar uma vida interior de comunhão com Deus. 

Eles facilmente podem sentir que "não precisam de Deus" se a sua beleza lhes facilita muito a vida e provê o acesso a muitas coisas que elas desejam. 

Podem, portanto, estar mais sujeitas à condenação eterna do inferno, justamente por causa das ilusões e prepotências que a sua formosura e a adulação dos outros lhe causam

Neste sentido, ser belo poderia ser antes uma maldição do que uma bênção!

Uma pessoa deslumbrante, se não se cuidar, pode ser arrastada à perdição devido àquela sensação que a sua beleza lhe traz de poder ser perfeitamente feliz neste mundo (e que a faz querer aproveitar ao máximo - e irresponsavelmente - o aqui e agora, esquecendo-se do quanto esta vida é passageira e do quanto as coisas mundanas são vazias em si mesmas). 

"De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder sua alma?

É muito oportuna esta pergunta de Jesus (Mc 8,36) se aplicada ao caso em questão, já que a beleza pode fazer-nos ganhar muitas coisas que serão inúteis após a morte e perder aquela que é a mais importante: o amor de Deus nosso criador. 

Às pessoas atraentes e afastadas dos verdadeiros Bens que não perecem, Ele talvez diria: 

"De que vale você ser servido(a) e desejado(a) por todos na terra e, depois, queimar para sempre no inferno com esse rosto e esse corpo de que se orgulha tanto?"

O mesmo vale para os voyeurs, os que assistem pornografia e todos os que olham para as outras pessoas com olhar impuro:

"Se o teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo, onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga." (Mc 9, 47-48)

A pessoa que está muito satisfeita consigo e com a própria vida, ou que recebe estímulos constantes à vaidade, pode não enxergar muitas razões para procurar saber qual é a vontade do Criador sobre ela e o que ela deve fazer para amá-Lo e obedecê-Lo, assegurando a sua felicidade não apenas nesta transitória existência terrena, mas para sempre, na eternidade.

Será que damos valor às coisas que realmente importam e que
poderão nos valer de alguma coisa quando deixarmos este mundo?

Mas, se você é uma pessoa bonita e sempre ouve elogios, não precisa se desesperar com o que acabamos de dizer. 

Deus não irá te condenar por algo que Ele mesmo te deu, a menos que você faça da sua beleza um ídolo, um pretexto para o pecado e a imodéstia, e dê a ela o valor e importância que são devidos somente a Deus. 

Você pode se inspirar, por exemplo, em Santa Rosa de Lima, que era uma jovem belíssima e, contudo, fez-se santa! Para isso, porém, ela chegou a deplorar a sua beleza, lamentando que o seu lindíssimo rosto fizesse tantos homens cortejá-la. Ela deplorava que tantos quisessem tirá-la do caminho de santidade que Deus queria para ela!


No filme Rosa de Lima há mesmo uma cena em que ela puxa com força as carnes de sua face (como se quisesse arrancá-las) e, com voz de sofrimento, diz algo como "Eu não quero esta beleza que me afasta de Ti, Senhor!"... 

O corpo ela nunca mostrava, e o rosto, ela o teria preferido desfigurado! Ela sofria por ser bela e desejava não sê-lo para ter menos dificuldades no seu caminho para Deus! Que diferença da nossa mentalidade atual, não?... 

Talvez não nos seja necessário deplorar a tal ponto a própria beleza, mas importa sim, e muito (!), esforçar-se para não ofender a Deus com palavras, gestos, atos ou pensamentos de vaidade e/ou imodéstia. 

Busque na internet as páginas, canais e blogs que ensinam a prática da virtude da modéstia, tão negligenciada nos dias de hoje.

Encerro com uma fábula de La Fontaine, intitulada O Corvo e a Raposa, que ilustra bem como nós podemos facilmente perder bens de grande valor por causa da nossa tola vaidade, só percebendo a ilusão do nosso erro tarde demais:

O senhor corvo numa árvore empoleirado
Segurava no seu bico um queijo.
A senhora raposa, pelo odor atraída,
dirigiu-se-lhe mais ou menos com estas palavras:
"Olá! Bom dia, senhor corvo!
Como sois bonito! Como me pareceis belo!
Sem mentir, se o vosso gorjeio
for semelhante à vossa plumagem,
vós sois a fénix dos habitantes destes bosques!"
Com estas palavras, o corvo não coube em si de contente.
E, para mostrar a sua bela voz,
abriu o grande bico e deixou cair a sua presa.
A raposa logo dela apoderou-se e disse: "Meu bom senhor,
aprendei que todo o adulador
vive às custas daquele que o escuta:
esta lição vale bem um queijo, sem dúvida."
O corvo, envergonhado e confuso,
jurou, mas um pouco tarde, que não mais seria engambelado.

Não importa se você é um rei, uma rainha ou um cardeal: neste mundo você estará sempre dançando com a morte. Lembra-te que és pó e ao pó voltarás. Memento Mori