sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Verdade do cristianismo? - Por Joseph Ratzinger


ROMA, quarta-feira, 11 de maio de 2005 (Artigo originalmente publicado por ZENIT.org).- Publicamos a conferência ministrada pelo cardeal Joseph Ratzinger na Sorbona de Paris no dia 27 de novembro de 1999 sobre «Verdade do cristianismo?».
Ao final do segundo milênio, o cristianismo vive, no terreno de sua expansão original, a Europa, uma profunda crise que resulta de sua pretensão à verdade. Esta crise tem uma dimensão dupla; primeiro, é colocada cada vez mais a questão de se é justo, no fundo, aplicar a noção de verdade à religião: em outros termos, se é dado ao homem conhecer a verdade propriamente dita sobre Deus e as coisas divinas.

O homem contemporâneo se reconhece melhor na parábola budista do elefante e os cegos: um rei do norte da Índia reuniu um dia em um mesmo lugar a todos os habitantes cegos da cidade. Depois fez passar diante dos assistentes a um elefante. Permitiu que uns tocassem a cabeça, dizendo: isto é um elefante. Outros tocaram a orelha ou a presa, a tromba, a pata, o traseiro, os pêlos da cauda. Em seguida, o rei perguntou a cada um: como é um elefante?, e segundo a parte que haviam tocado, responderam: é como um cesto de vime, é como um recipiente, é como a barra de um arado, é como um depósito, como um pilar, como um morteiro, uma vassoura... Então — continua a parábola —, começaram a brigar e a gritar “o elefante é assim ou assado” até que avançaram uns contra outros a socos, para grande diversão do rei.

A questão das religiões se revela aos homens de hoje como a questão destes homens que nasceram cegos. É o que parece; frente aos segredos do divino, somos como cegos de nascença. Para o pensamento contemporâneo, o cristianismo de maneira nenhuma se acha em uma postura mais positiva que outras. Ao contrário, com sua pretensão de verdade, parece particularmente cego frente ao limite de nosso conhecimento do divino, e se distingue por um fanatismo singularmente insensato, que toma o que irremediavelmente é a parte que a experiência pessoal conseguiu agarrar, pelo todo.

Este ceticismo geral diante da pretensão de verdade em matéria religiosa se alimenta também dos questionamentos da ciência moderna sobre as origens e o objeto da esfera cristã. É como se a teoria da evolução tivesse ultrapassado a teoria da criação, e os conhecimentos sobre a origem do homem, a doutrina do pecado original: a exegese crítica relativiza a figura de Jesus e duvida da sua consciência de Filho; a origem da Igreja em Jesus parece incerta, etc.

O “fim da metafísica” propiciou que o fundamento filosófico do cristianismo se tornasse problemático, enquanto que os modernos métodos históricos colocaram as bases históricas dele sob uma luz ambígua. Assim, ficou fácil reduzir os conteúdos cristãos a um discurso simbólico, sem lhes atribuir uma verdade superior à dos mitos da história das religiões: eles são percebidos como uma forma de experiência religiosa que deve se situar com humildade ao lado de outras.

Nesse sentido, ainda é possível, aparentemente, continuar sendo cristão; as expressões do cristianismo continuam a ser usadas, embora sua pretensão, é claro, mudou da cabeça aos pés: a verdade que foi para o homem uma força obrigatória e uma promessa confiável, é agora uma expressão cultural da sensibilidade religiosa geral, expressão que, dão a entender, é o produto das circunstâncias de nossa origem européia.

No começo do século XX, Ernst Troeltsch formulou filosófica e teologicamente esta renúncia interior do cristianismo com relação à sua pretensão universal original, que só podia se fundar sobre a sua pretensão de verdade. Ele se convenceu de que as culturas são insuperáveis e de que a religião está ligada às culturas. O cristianismo não é mais do que o ângulo do rosto de Deus que está voltado para a Europa. As “particularidades individuais dos círculos culturais e raciais” e “as particularidades de suas grandes formações religiosas em conjunto” alcançam o nível de uma instância última: “quem se atreve a comparar valores de forma decisiva? Só Deus, que está na origem destas diferenças, pode fazê-lo”.

O cego de nascimento sabe que não nasceu para ser cego; não deixará de interrogar-se sobre o porquê de sua cegueira e como livrar-se dela. Só na aparência o homem se resignou ao veredicto de ter nascido cego, com relação à única realidade que em última instância conta em sua vida. A empresa titânica de se apropriar do mundo, de extrair de nossa vida e em favor dela tudo o que for possível, prova —tanto como os fulgores de um culto feito de transe, de transgressão e de autodestruição—, que o homem não se satisfaz com este julgamento. Se não souber de onde vem nem por que existe, não é acaso em todo seu ser uma criatura falida?

Que enganoso é esse pretenso adeus definitivo à verdade divina e à essência de nosso eu, e essa aparente satisfação de já não ter que se ocupar mais disso. O homem não pode se resignar a ser e permanecer em essência cego de nascença. O adeus à verdade nunca é definitivo. Sendo assim, deve ser reproposta a anacrônica pergunta de “se o cristianismo for verdade”, por superficial e insolúvel que pareça a muitos. Como repropô-la?

Sem dúvida a teologia cristã deverá examinar minuciosamente, sem medo de se expor, as diversas instâncias que se elevaram contra a pretensão cristã de verdade em matéria filosófica, nas ciências naturais, na história natural. Mas também deve obter uma visão que abranja o problema inteiro da essência do cristianismo, de sua postura na história das religiões e de seu lugar na vida humana. Queria dar um passo nesta direção, me concentrando na pergunta de como em sua origens o próprio cristianismo percebeu a sua pretensão no universo das religiões.

Até onde entendo, nenhum texto da Antigüidade cristã é tão esclarecedor a esse respeito como a discussão de Santo Agostinho com a filosofia religiosa do “mais douto dos romanos”, Marco Terêncio Varrão (127 a.C.). Varrão compartilhava a imagem estóica de Deus e do mundo. Definia a Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem (“a alma que dirige o mundo pelo movimento e a razão”), em outras palavras, como a alma do mundo que os gregos chamaram Cosmos: hunc ipsum mundum esse deum. À alma do mundo, certo, não se rendia culto. Não foi o objeto de uma religio.

Em outros termos, verdade e religião, conhecimento racional e ordem cultual se localizam em dois planos totalmente diferentes. A ordem cultual, o mundo concreto da religião, não pertence à ordem da res, da realidade como tal, mas sim ao dos costumes (mores). Os deuses não criaram o Estado, o Estado estabeleceu os deuses cuja veneração é indispensável para a ordem do Estado e o bom comportamento dos cidadãos. A religião é, em essência, um fenômeno político. Varrão distingue três tipos de “teologia”, entendendo por teologia a ratio quae de diis explicatur —a compreensão e a explicação do divino, poderia ser traduzida. Tais são a theologia mythica, a theologia civilis e a theologia naturalis. 

Mediante quatro definições, esclarece o que entende por estas “teologias”. A primeira definição se refere aos três teólogos classificados segundo estas três teologias: os teólogos da teologia mítica são os poetas, porque compuseram cantos sobre os deuses e porque são também os poetas da divindade. Os teólogos da teologia física (natural) são os filósofos, quer dizer os eruditos, os pensadores que, além dos costumes, se interrogam sobre a realidade, sobre a verdade; os teólogos da teologia civil são os “povos”, que não optaram por aliar-se aos filósofos (à verdade) mas aos poetas, às suas visões poéticas, às suas imagens e figuras.

A segunda definição concerne ao lugar da realidade onde cada teologia se localiza. A teologia mítica se estabelece no teatro, o qual se circunscrevia por completo num âmbito religioso, de culto; de acordo com a opinião imperante, os espetáculos se instauraram em Roma por ordem dos deuses. A teologia política se acomoda na urbs, enquanto que o espaço da teologia natural é o cosmos. A terceira definição se refere ao conteúdo das três teologias: a teologia mítica abrange as fábulas que os poetas criam a respeito dos deuses; a teologia do Estado, o culto; a teologia natural responde à pergunta: “quem são os deuses?” Aqui vale a pena escutar com mais cuidado: “se eles são feitos de fogo, como acreditou Heráclito, se de números, como acreditou Pitágoras, se de átomos, como Epicuro, e outros desvarios semelhantes, mais adequados para serem ouvidos entre paredes, nas escolas, do que fora, no trato humano e na conversação social”.1

Aparece, com toda clareza, que esta teologia natural é uma desmitificação ou, melhor ainda, uma racionalidade que, com seu olhar crítico, supera a aparência mítica que analisa, mediante as ciências naturais. Culto e conhecimento se separam por completo. O culto continua sendo necessário, pois é assunto de utilidade política; o conhecimento tem um efeito destruidor sobre a religião, e por isso não deve ser exposto em praça pública. Finalmente, fica a quarta definição: Que tipo de realidade constituem as diversas teologias?

Varrão responde: A teologia natural se ocupa da “natureza dos deuses” (que quase não existem), as outras duas teologias tratam de divina instituta hominum —das instituições divinas dos homens. Assim, toda a diferença se reduz à que existe entre a física em seu sentido antigo e a religião cultual. “A teologia civil finalmente não tem deus algum, somente a ‘religião’, a ‘teologia natural’ não tem religião, mas sim somente uma divindade”. Não, não pode ter religião alguma, porque não é possível dirigir religiosamente a palavra a seu deus: fogo, número, átomos. Assim, religio (termo que designa essencialmente o culto) e realidade, o conhecimento racional da realidade, localizam-se como duas esferas separadas, uma junto à outra.

A religio não encontra sua justificação na realidade do divino, mas sim de sua função política. É uma instituição de que o Estado precisa para existir. Sem dúvida, achamo-nos neste ponto em uma fase tardia da religião, em que a candura do mundo religioso se racha e inicia sua decomposição. Entretanto, o vínculo essencial da religião com a comunidade do Estado penetra ainda mais a fundo. O culto é, em última instância, uma ordem positiva, e como tal não deve se medir com a questão da verdade.

Em uma época em que a função política tinha ainda forças suficientes para justificar-se como tal, Varrão podia continuar defendendo o culto politicamente motivado, a partir de uma concepção um tanto crua da racionalidade e da ausência da verdade, enquanto que o neoplatonismo procuraria logo outra saída para a crise, um meio no que se apoiará mais tarde o imperador Juliano, em um esforço por restabelecer a religião romana de Estado: o que dizem os poetas são imagens que não devem entender-se de forma física; são imagens que, entretanto, dizem o inefável para todos aqueles a quem está proibido o caminho real da união mística. Embora as imagens como tais não são verdadeiras, elas se justificam nesse momento como aproximações do que, necessariamente, deve sempre permanecer inefável.

Mas já nos adiantamos. Com efeito, a postura neoplatônica, por sua parte, é já uma reação contra a postura cristã, diante do tema da fundação cristã do culto e da fé que está em sua origem, da topografia desta fé na tipologia das religiões. Voltemos para Agostinho. Onde situa ao cristianismo na tríade das religiões de Varrão? Surpreendentemente, sem sequer duvidar, atribui ao cristianismo o seu lugar no domínio da teologia física, no domínio da racionalidade filosófica. Isto o coloca em perfeita continuidade com os teólogos anteriores ao cristianismo, os Apologistas do século II, e inclusive, com Paulo e sua topografia da realidade cristã no primeiro capítulo da epístola aos romanos: uma topografia que, por seu lado, se apóia na teologia veterotestamentária da Sabedoria — e remonta, anteriormente a esta, até os Salmos e aos seus escárnios dos deuses.

O cristianismo, nesta perspectiva, tem os seus precursores e a sua preparação interior na racionalidade filosófica, e não nas religiões. O cristianismo, para Agostinho e de acordo com a tradição bíblica, que para ele era normativa, não se funda em imagens e pressentimentos míticos, cuja justificação se acha ao fim e ao cabo em sua utilidade política, mas sim, ao contrário, tende à esfera divina que é capaz de advertir a análise racional da realidade. Em outras palavras, Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as visões filosóficas sobre o fundamento do mundo, que se formaram, segundo diversas variações, na filosofia antiga. Isto é o que se entende quando, do areópago de São Paulo, o cristianismo se apresenta com a pretensão de ser a religio vera.

Significa: a fé cristã não se apóia na poesia nem na política, essas duas grandes fontes da religião; ela se apóia no conhecimento. Venera a este Ser que se acha no fundamento de tudo o que existe, o “Deus verdadeiro”. No cristianismo, a racionalidade se tornou religião, e não seu adversário. Por conseguinte, porque o cristianismo se entendeu como a vitória da desmitificação, a vitória do conhecimento e, com ela, a da verdade, devia necessariamente se considerar universal e ser levado a todos os povos: não como uma religião específica que reprime a outras, não como um imperialismo religioso, mas sim, mais exatamente, como a verdade que torna supérflua a aparência.

E é por isso justamente que, na ampla tolerância dos politeísmos, ele aparece necessariamente como intolerável, e até como inimizade da religião, como “ateísmo”. Não se limitou à relatividade e à convertibilidade das imagens, de sorte que incomodou em especial a utilidade política das religiões, e pôs em perigo os fundamentos do Estado, ao não querer ser uma religião entre outras, mas sim a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões.

Por outro lado, a esta topografia da esfera cristã no cosmos da religião e da filosofia, também se acrescenta a força de penetração do cristianismo. Desde antes de a missão cristã ter início, nos círculos cultos da Antigüidade, foi buscada, na figura do “homem temeroso de Deus”, uma aliança com a fé judaica. Esta era percebida como uma imagem religiosa do monoteísmo filosófico, em correspondência com as exigências da razão, ao mesmo tempo que com a necessidade religiosa do homem. A filosofia não podia responder a esta necessidade por si só: não se reza a um deus que só é pensado. Entretanto, quando o deus que o pensamento achou se deixa encontrar no coração da religião como um deus que fala e age, o pensamento e a fé se reconciliam.

Nesta aliança com a sinagoga, permanecia porém um fundo insatisfatório: o não-judeu não era mais do que um sócio, não obtinha uma inserção completa. Esta amarra foi rompida pela figura de Cristo no cristianismo, conforme a interpretação de Paulo. A partir daí, o monoteísmo religioso do judaísmo se tornou universal, e a unidade entre pensamento e fé, a religio vera, se tornou acessível a todos. Justino o filósofo, Justino mártir (+167) pode ser visto como uma figura sintomática deste acesso ao cristianismo: ele estudou todas as filosofias e, ao final, reconheceu no cristianismo a vera philosophia.

Ao se converter ao cristianismo, não renegou, segundo a sua própria convicção, a filosofia; pelo contrário, só a partir daí ele se tornou realmente filósofo. A convicção de que o cristianismo é uma filosofia, a filosofia perfeita, a que pôde penetrar na verdade, permaneceu vigente tempo depois da era patrística. Está presente ainda no século XIV, na teologia bizantina de Nicolau Cabassilas, de uma maneira totalmente normal. Certamente, não se entendia com isso unicamente a filosofia como uma disciplina acadêmica de natureza meramente teórica, mas também, e sobretudo, no plano prático, como a arte de viver e de morrer justamente; uma arte que, no entanto, só se obtém à luz da verdade.

A união da racionalidade e da fé, que se deu no desenvolvimento da missão cristã e na edificação da teologia cristã, trouxe, é claro, corretivos decisivos na imagem filosófica de Deus; destes, dois em particular devem ser mencionados. O primeiro consiste em que o Deus no qual os cristãos acreditam e veneram, ao contrário dos deuses míticos e políticos, é verdadeiramente natura Deus; nisto, satisfaz as exigências da racionalidade filosófica. Mas, ao mesmo tempo, também é válido o outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus: não toda natureza é Deus. Deus é Deus por natureza, mas a natureza como tal não é Deus.

Uma separação é feita entre a natureza universal e o ser que a funda, que lhe dá origem. Só então a física e a metafísica se distinguem claramente uma da outra. Só o Deus verdadeiro que podemos reconhecer pelo pensamento na natureza é objeto de preces. Embora seja mais do que a natureza: Ele a precede, ela é sua criatura. A esta separação entre a natureza e Deus se acrescenta um segundo achado, ainda mais importante: a Deus, à natureza, à alma do mundo, ou qual for o nome recebia, não era possível rezar; como já vimos, não era um “deus religioso”.

Mas agora, conforme já a fé do Antigo Testamento e mais ainda a do Novo Testamento enunciava, este deus que precede à natureza se dirigiu aos homens. Por não ser apenas natureza, ele não é um deus silencioso. Entrou na história, veio ao encontro do homem, e por isso o homem pode agora se encontrar com ele. Pode se vincular com Deus, porque Deus se vinculou ao homem. Ambas as dimensões da religião, a natureza em seu reino eterno e a necessidade de salvação do homem em sofrimento e em luta, que estavam sempre separadas, estão vinculadas. A racionalidade pode se tornar uma religião, porque o Deus da racionalidade entrou, por sua vez, na religião. O elemento que a fé finalmente reivindica, a palavra histórica de Deus, não é acaso o pressuposto para que a religião possa se dirigir agora ao Deus filosófico, que não é um Deus meramente filosófico e que, no entanto, não desdenha o conhecimento filosófico, e sim o assume?

Algo surpreendente se torna aqui manifesto: os dois princípios fundamentais, contrários na aparência ao cristianismo: o vínculo com a metafísica e o vínculo com a história, se condicionam e remetem um ao outro. Somam juntos a apologia do cristianismo como religio vera. Se, portanto, se pode dizer que a vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs foi possível graças à sua pretensão de inteligibilidade, terá que acrescentar a isto um segundo motivo de igual importância.

Consiste, para dizê-lo em termos muito gerais, na seriedade moral do cristianismo; característica que, de resto, Paulo tinha também aproximado da racionalidade da fé cristã. Aquilo que a lei procura, no fundo, as exigências essenciais, iluminadas pela fé cristã, do Deus único na vida do homem, é aquilo que satisfaz as exigências do coração humano, de cada homem; de sorte que, quando esta lei lhe é apresentada, ele a reconhece como o Bem. Corresponde ao que “por natureza é bom” (Romanos 2, 14). A alusão à moral estóica, a sua interpretação ética da natureza, é aqui tão manifesta como em outros textos de Paulo; por exemplo, na Epístola aos Filipenses . “Ocupem seu pensamento em tudo o que for verdadeiro, puro, amável, em tudo o que for de boa fama; fazendo tudo aquilo que mereça elogio” (Filipenses, 4: 8).

Assim a unidade fundamental (embora crítica) com a racionalidade filosófica, presente na noção de Deus, é então confirmada e concretizada na unidade, crítica por sua vez, com a moral filosófica. Da mesma forma que, no domínio da religião, o cristianismo transbordava os limites da sabedoria da filosofia de escola, porque precisamente o Deus pensado se deixava encontrar como um Deus vivo; assim, houve aqui também um além da teoria ética em uma práxis moral, vivida e concretizada de maneira comunitária, em que a perspectiva filosófica era transcendida e transportada à ação real, em particular na concentração de toda a moral sob o duplo mandamento do amor de Deus e do próximo.

O cristianismo, poderíamos simplificar, convencia pelo elo entre a fé e a razão, e pela orientação da ação para a caritas, o cuidado caridoso dos doentes, dos pobres e dos fracos, para além de todos os limites da própria condição. Que esta fosse a força o cristianismo, sem dúvida se revela com toda claridade na maneira como o imperador Juliano tentou restabelecer o paganismo sob uma nova forma. Ele, Pontifex maximus da religião restabelecida dos deuses antigos, instituiu uma hierarquia pagã de sacerdotes e metropolitas, até então inexistente. Os sacerdotes deviam ser exemplos de moralidade; deviam se entregar ao amor de Deus (a divindade suprema acima dos deuses) e do próximo.

Estavam obrigados a atos de caridade para com os pobres, não podiam ler as comédias licenciosas nem as novelas eróticas, e deviam pregar nos dias festivos a partir de um argumento filosófico, para instruir e formar o povo. A esse respeito, Teresio Bosi diz, com razão, que o imperador não procurava com isto restabelecer o paganismo, e sim cristianizá-lo, mediante uma síntese forçada, dirigida ao culto dos deuses, entre a racionalidade e a religião. Podemos dizer, se olharmos para trás, que a força que transformou o cristianismo em uma religião mundial consistiu em sua síntese entre razão, fé e vida: esta síntese precisamente acha nas palavras religio vera uma expressão abreviada.

Impõe-se ainda mais a pergunta: por que esta síntese não convence hoje? Por que a racionalidade e o cristianismo se consideram, mais ainda, contraditórios e até excludentes? O que mudou na racionalidade, o que mudou no cristianismo para que seja assim? Antigamente, o neoplatonismo, Porfírio em especial, opôs à síntese cristã uma interpretação diferente da relação entre filosofia e religião, uma interpretação que se entendia como a refundação filosófica da religião dos deuses. Sobre ela, Juliano edificou e fracassou.

Hoje, entretanto, esta outra maneira de harmonizar a religião e a racionalidade é a que parece se impor como a forma de religiosidade adaptada à consciência moderna. Porfírio formula assim sua primeira idéia fundamental: latet omne verum — a verdade está oculta. Recordemos a parábola do elefante, que ilustra esta idéia onde coincidem budismo e neoplatonismo. Segundo ela, não há certeza a respeito da verdade sobre Deus, tão somente opiniões. Na crise de Roma no século IV tardio, o senador Símaco — imagem reflexa de Varrão e de sua teoria da religião — retornou à concepção neoplatônica com fórmulas simples e pragmáticas, que se acham em seu discurso de 384 ante o imperador Valentiniano II, em defesa do paganismo e a favor do restabelecimento da deusa Vitória no senado romano.

Cito só a oração decisiva, já célebre: “Todos veneram uma mesma coisa, pensamos uma mesma coisa, contemplamos as mesmas estrelas, o céu sobre nós é único, envolve-nos um mesmo mundo; pouco importam as formas várias da sabedoria mediante as quais cada qual busca a sua verdade. Não é possível chegar por um só caminho a um mistério tão grande”. Exatamente isto é o que a racionalidade diz hoje: não conhecemos a verdade enquanto tal; por imagens diferentes expressamos, afinal de contas, o mesmo. Um mistério tão grande, o divino, não pode ser reduzido a uma só figura que exclua a todas as outras, a um caminho que serviria a todos.

São muitos os caminhos, muitas as imagens, todas refletem algo de tudo, e nenhuma é por si mesmo o todo. O ethos da tolerância é o de quem reconhece em cada um uma parte da verdade, de quem não coloca o seu por cima do outro e de quem se insere pacificamente na sinfonia polimorfa do eterno Inacessível. Este, com efeito, se dissimula entre os véus dos símbolos, embora estes símbolos são, tal como parece, nossa única possibilidade de alcançar de alguma forma o divino. A pretensão do cristianismo de ser a religio vera teria sido ultrapassada pelo progresso da racionalidade? É indispensável rebaixar o nível de sua pretensão e inseri-la na visão neoplatônica ou budista ou hindu da verdade e do símbolo? Conformar-se, como propôs Troeltsch, em mostrar, do rosto de Deus, o ângulo voltado para os europeus?

Deveria ser dado até mesmo um passo a mais com relação a Troeltsch, que considerava ainda ao cristianismo como a religião adaptada à Europa, tomando em conta que hoje em dia a própria a Europa duvida dessa adaptação? Esta é hoje a pergunta verdadeira que a Igreja e a teologia devem enfrentar. Todas as crises que observamos agora dentro do cristianismo só radicam de maneira muito secundária em problemas institucionais.

Os problemas de instituições e de pessoas na Igreja se derivam, no final, desta pergunta e do seu imenso peso. Ninguém espera que esta provocação fundamental ao termo do segundo milênio cristão ache, nem de longe, uma resposta definitiva numa conferência. Não pode achar em absoluto uma resposta meramente teórica, assim como, por ser atitude última do homem, a religião nunca é apenas teoria. Ela requer esta combinação de conhecimento e de ação que fundou a força de convicção do cristianismo dos Padres.

Isto de maneira nenhuma significa que se podem esquivar as exigências intelectuais do problema, remetendo à necessidade da praxis. Apenas procurarei, para terminar, abrir uma perspectiva que poderia apontar a direção. Vimos que a unidade racional, entre racionalidade e fé, a que Tomás de Aquino deu por fim uma forma sistemática, foi rompida menos pelo desenvolvimento da fé que pelos novos progressos da racionalidade. Como etapas desta mútua separação, poderíamos nomear a Descartes, Spinoza, Kant. A nova síntese unificadora que Hegel tentou não devolveu à fé o seu lugar filosófico, apesar de ter tentado transformá-la em razão e aboli-la como fé.

A este absoluto do espírito, Marx opôs a unicidade da matéria; a filosofia teve que se ater por completo à ciência exata. Só o conhecimento científico exato continuou merecendo o nome de conhecimento. A idéia do divino foi exonerada. A profecia de Augusto Comte, de que um dia haveria uma física do homem e que as grandes perguntas até então a cargo da metafísica deveriam ser tratadas dali em diante tão “positivamente” como tudo o que já é hoje ciência positiva, teve em nosso século XX, na ciências humanas, uma ressonância impressionante. A separação que operou o pensamento cristão entre física e metafísica é relegada cada dia mais ao abandono.

Tudo deve se tornar de novo “física”. Cada vez mais, a teoria da evolução se cristalizou como a via para que desaparecesse para sempre a metafísica, para que a “hipótese de Deus” (Laplace) se tornasse supérflua e se formulasse uma explicação do mundo estritamente “científica”. Uma teoria da evolução que explique de maneira conjunta a soma de toda a realidade se transformou numa espécie de “filosofia primeira”, que representa, digamos, o fundamento verdadeiro da compreensão racional do mundo.

Qualquer tentativa de pôr em jogo outras causas além das elaboradas por esta teoria “positiva”, qualquer intento de “metafísica”, é visto como uma recaída abaixo da razão, como uma perda de nível diante da pretensão universal da ciência. Por isso, a idéia cristã de Deus se considera forçosamente como não científica. A esta idéia não corresponde mais nenhuma theologia physica: só a theologia naturalis é, nesta visão, a doutrina da evolução, e esta precisamente não conhece nenhum Deus, nem Criador no sentido do cristianismo (do judaísmo e do Islã), nem alma do mundo, nem dinamismo interior no sentido da Stoa. Eventualmente, o mundo inteiro poderia ser considerado, no sentido do budismo, como uma aparência, e um nada, como a verdadeira realidade, e justificar assim as formas místicas da religião que não estão, ao menos, em concorrência direta com a razão.

Foi dita então a última palavra? A razão e o cristianismo estão separados de maneira definitiva? Em qualquer caso, não existe caminho que possa evitar a discussão sobre o alcance da doutrina da evolução como filosofia primeira e sobre a exclusividade do método positivo como única forma de ciência e racionalidade. Esta discussão deve ser feita entre ambas as partes com serenidade e na disposição de escutar, o que até agora ainda não aconteceu. Ninguém pode questionar seriamente as provas científicas dos processos microevolutivos.

A respeito, R. Junker e S. Scherer dizem em seu “manual crítico” (kritisches Lesebuch) sobre a evolução: “Semelhantes acontecimentos (os processos microevolutivos) se conhecem bem com base nos processos naturais de variação e de formação. Seu exame, mediante a biologia da evolução, levou a conhecimentos significativos sobre a capacidade genial de adaptação dos sistemas vivos”. Dizem neste sentido que a investigação das origens pode se qualificada com justiça como a disciplina régia da biologia. A Pergunta que o homem de fé formulará diante da razão moderna não se refere a isto, mas sim à extensão de uma philosophia universalis que pretende se transformar em uma explicação geral do real e tende a abolir qualquer outro nível de pensamento.

Na doutrina mesma da evolução, o problema se destaca no trânsito entre a micro e a macro evolução, trânsito do que Szamarthy e Maynard Smith,2 ambos partidários convictos de uma teoria globalizadora da evolução, admitem: “Não há motivo teórico que permita pensar que as linhas evolutivas se tornam mais complexas com o tempo; também não há provas empíricas de que isto suceda”. A pergunta que deve ser formulada aqui vai, para falar a verdade, mais a fundo: a questão é saber se a doutrina da evolução pode se apresentar como uma teoria universal de tudo o que é real, além da qual já não se permitem e nem sequer são necessárias perguntas ulteriores sobre a origem e a natureza das coisas; ou se estas perguntas últimas não transbordam, no fundo, o terreno da investigação aberto às ciências naturais.

Queria expor a pergunta de maneira ainda mais concreta. Será que tudo já foi dito com o tipo de resposta que encontramos, por exemplo, em Popper, assim formulada: “A vida, tal como a conhecemos, consiste em ‘corpos’ físicos (melhor: em processos e estruturas) que resolvem problemas. É o que as diversas espécies ‘aprenderam’ da seleção natural, quer dizer pelo método de reprodução mais variação; um método que, por sua parte, aprendeu-se segundo este mesmo método. trata-se de uma regressão; uma regressão ao infinito...”? Não creio. Afinal de contas, trata-se de uma alternativa que nem as ciências naturais nem a filosofia podem simplesmente resolver.

O ponto está em saber se a razão ou o racional se acham ou não no começo de todas as coisas e no seu fundamento. O ponto está em saber se o real surgiu a partir do acaso e da necessidade (ou, com Popper, com Butler, do lucky cunning [feliz casualidade e previsão]), e por conseguinte, do que não tem razão; se, em outras palavras, a razão é um produto periférico e acidental do irracional e se for finalmente tão insignificante no oceano do irracional, ou se continua sendo verdade o que constitui a convicção fundamental da fé cristã e de sua filosofia: In principio erat Verbum — no começo de todas as coisas está a força criadora da razão.

A fé cristã é, hoje como ontem, a opção pela prioridade da razão e do racional. Esta pergunta última, como se disse, já não se pode resolver com argumentos tirados das ciências naturais, e o mesmo pensamento filosófico encontra aqui os seus limites. Neste sentido, não é possível oferecer uma prova última da opção cristã fundamental. Mas pode a razão, afinal, sem renegar a si mesma, renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos? O modelo hermenêutico que Popper oferece, o qual reaparece sob diversas formas em outras apresentações da “filosofia primeira”, mostra que a razão não pode evitar o pensar o irracional segundo a sua medida, quer dizer, racionalmente (resolver problemas, elaborar métodos), restabelecendo assim, de maneira implícita, a primazia da razão questionada.

Por sua opção em favor da primazia da razão, o cristianismo continua sendo ainda hoje “racionalidade”, e penso que a racionalidade que se desfaz desta opção implicaria, contrariamente às aparências, não uma evolução mas sim uma involução da racionalidade. Vimos anteriormente que, na concepção da Antigüidade cristã, as noções de natureza, homem, Deus, ethos e religião estavam indissoluvelmente vinculadas, e que este vínculo permitiu ao cristianismo divisar a crise dos deuses e a crise da antiga racionalidade. 

A orientação da religião dirigida a uma visão racional do real como tal, o ethos como parte desta visão, e sua aplicação concreta sob a primazia do amor se associaram. A primazia do logos e a primazia do amor se revelaram idênticas. O logos não apareceu apenas como razão matemática na base de todas as coisas, mas sim como um amor criador, ao ponto de se tornar compaixão da criatura. A dimensão cósmica da religião que, na potência do ser, venera o Criador, e a sua dimensão existencial, a questão da redenção, se interpenetraram e se tornaram um só problema.

De fato, uma explicação da realidade que não pode fundar por sua vez um ethos de maneira sensata e compreensiva, é necessariamente insuficiente. Entretanto, é um fato que a teoria da evolução, quando se arrisca a ampliar-se em uma philosophia universalis, tenta também refundar o ethos sobre a base da evolução. Mas este ethos da evolução, que inegavelmente encontra sua noção chave no modelo da seleção, e por conseguinte, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação obtida, oferece poucos consolos. Mesmo quando se tenta embelezá-lo de várias formas, continua sendo afinal um ethos cruel.

O esforço por destilar o racional a partir de uma realidade em si mesmo insensata, fracassa aqui a olhos vistos. Tudo isto de pouco serve para o que precisamos: uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo e da necessária superação do bem individual. A tentativa de devolver, nesta crise da humanidade, um sentido pormenorizado à noção de cristianismo como religio vera, deve apostar, por assim dizer, tanto na ortopráxis como na ortodoxia. Seu conteúdo deverá consistir, no fundo (para falar a verdade, hoje como ontem), em que o amor e a razão coincidem como pilares fundamentais propriamente ditos do real: a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão verdadeira. Em sua unidade, são o fundamento verdadeiro e o fim de todo o real.

Cardeal J. Ratzinger

Notas
1. A Cidade de Deus, São Agustín, Livro VI.
2. Existe uma versão em castelhano de seu Handbook on Evolution. [Nota da T.]
[Traduzido por Pe. Celso Nogueira, LC]

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O Brasil apocalíptico dos acadêmicos

Definitivamente, os acadêmicos mais renomados das nossas universidades públicas vivem hoje em um universo paralelo, um mundo à parte criado por eles num ímpeto de fuga e auto alheamento da concretude terrena, um reduto mental totalmente apartado do mundo real. De lá, julgam poder analisar (e deplorar) a realidade deste nosso Brasil sem reconhecê-la de fato.

Alardeiam "golpes", usurpações e abusos do judiciário onde ocorreram apenas procedimentos corretivos perfeitamente regulares (e até inescapáveis, tanto quanto necessários) dentro da normalidade de um Estado democrático de direito. Choram e lamuriam o "crepúsculo" da democracia brasileira quando o que há de fato é a aurora de uma representatividade política real, de uma verdadeira correspondência entre as legítimas aspirações da população brasileira - aspirações há muito reprimidas, manipuladas ou diluídas pelos poderes dominantes - e as instituições públicas que deveriam empenhar-se por traduzi-las em atos de governo.

Bons tempos aqueles... não?...
Para eles, democracia mesmo havia quando o povo votava em quem sempre votou, comprado por algum tipo de assistencialismo ou iludido por promessas irrealizáveis, ideologias, discursos demagógicos, peças de propaganda oficial, bonanças efêmeras e crédito facilitado. Agora, choram a queda daquele antigo regime, lamentam a agonia do velho fisiologismo, saudosos dos tempos em que PT e PSDB (com seus respectivos satélites) podiam se alternar tranquilamente no poder, simulando uma oposição de fachada e logrando (des)governar o país e "promover a indústria nacional" mediante um capitalismo de compadrio com Batistas e Odebrechts, favorecidos, é claro, também por um centrão conivente, num grande acordo de comadres.
"Democracia" segundo os acadêmicos
Enquanto celebramos o fim da manipulação da opinião pública (e da captura do Estado por uma agenda partidária que se provou altamente nociva e perversa) e festejamos o efeito mais radiante desse despertar da consciência popular, que é a ascensão de um governo que poderemos chamar, com alguma propriedade, de democrático (finalmente!), as grandes mentes esclarecidas da elite acadêmica lamuriam, como velhas carpideiras, o "ocaso da democracia" no Brasil...

Isso já não é mais um efeito de paralaxe cognitiva. É esquizofrenia auto induzida!

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Podemos amar nossos pets e chamá-los de "filhos"?



Eu gosto muito de cachorros. Gosto tanto a ponto de ter vertido lágrimas, já depois de adulto, quando morreu um pastor alemão que tínhamos no sítio. Conhecia-o desde que nasceu, era o mais fofucho dos filhotes que a cadela teve e por vários anos ele havia sido um bom companheiro de passeios, brincadeiras e corridas. Afeiçoei-me muito a ele. Mas nunca me permiti criar o mau hábito de chamá-lo de "filho" ou tratá-lo como tal. Não é adequado chamar nossos pets de "filhos". Leia o texto até o fim e entenda o motivo.
É natural que tenhamos afeto por criaturas de outras espécies, mas o que acontece hoje em dia com muitas pessoas é uma desordem afetiva que com frequência pode ser ofensiva a Deus. Nosso amor deve ser ordenado primeiramente à própria Fonte da nossa existência, Àquele que nos amou até a morte de cruz: o Deus Uno e Trino. Em seguida, devemos amar o nosso semelhante como amamos a nós mesmos, o que significa que devemos amar os outros seres humanos com um grande amor. E só depois é que devemos amar as outras criaturas.

Mas hoje em dia há pessoas que tem namorados com os quais já se relacionam sexualmente sem formalizar compromisso algum e não querem ter filhos, apenas pets. (Relações sexuais só deveriam acontecer entre pessoas unidas em santo matrimônio e filhos numerosos deveriam necessariamente ser o fruto dessas uniões.) Aí essa gente insana ainda chama os pets de "filhos"... E gastam com os pets mais $ do que jamais gastariam com uma pessoa necessitada. Ou dedicam mais tempo e afeto aos pets do que ao próprio Deus. Enfim, esta é apenas uma das várias consequências da desordem espiritual que os maus costumes modernos causaram nas pessoas. Sei que este muitas vezes não é um erro intencional, mas é bom irmos corrigindo isso o quanto antes.
Podemos ter pets, é bom ter pets, sabemos que alguns santos tiveram seus pets e os estimavam muito, como S. Francisco de Paula, que tinha um cordeirinho chamado Martinello. Outro santo ainda mais conhecido, Francisco de Assis, era famoso por sua amizade com os pássaros. Entretanto, nenhum deles amava mais os seus pets do que a Deus ou ao próximo.

Jamais devemos dar a um pet mais tempo, afeto e recursos do que damos a Deus e aos nossos semelhantes. Até porque há pouco mérito em amar um pet justamente porque é muito fácil amar um pet, já que nós o vemos e interagimos com ele diretamente (ao contrário de Deus e dos Anjos) e o pet, não sendo igual a nós em inteligência e livre vontade, não nos chateia nem nos desaponta (ao contrário dos outros seres humanos). Como é fácil demais amá-los, há pouco mérito em amá-los, pois exige pouca virtude da nossa parte.

Amar ordenadamente cada ser conforme o seu valor intrínseco é uma virtude indispensável.

O valor de Deus é infinito, o valor dos Anjos é imenso, o valor de outro ser humano é tão grande quanto o meu valor, e o valor das demais criaturas de Deus é também grande, mas é menor que o valor de um ser humano, menor que o valor de um Anjo e, claro, infinitamente menor que o valor de Deus. Que o nosso amor seja assim bem ordenado e vivido com sabedoria!

Ame o seu pet, mas jamais acima de Deus, do seu Bom Anjo da Guarda, que sempre está ao teu lado pra te proteger, e do seu próximo que necessita de você. E evite chamar o pet de "filho", pois ele não o é. 

Se soubermos amar nossos pets da maneira certa, podemos até aprender com eles a sermos mais humildes, dóceis e obedientes a Deus como eles o são a nós. Como São Josemaría Escrivá, que desejava tornar-se semelhante ao humilde jumentinho que levou Nosso Senhor na sua entrada em Jerusalém para nos redimir.
Detalhe da pintura de Giotto