quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Entenda O Homem que foi Quinta-feira, de G. K. Chesterton

Uma história de conspiração e investigação policial que dá ensejo para muitas reflexões filosóficas interessantes.


Por Luiz de Moraes

O texto que segue tem o propósito de resumo e interpretação do livro.

O Homem que foi quinta-feira, de G. K. Chesterton, pode ser classificado como uma narrativa policialesca fictícia repleta de alegorias que refletem/criticam o mundo real e moderno e que, ao mesmo tempo, está recheada de referências ao universo ideológico e espiritual, do qual invoca conceitos que facilmente podem ser debatidos a partir do romance. 

Ora diretos, ora apenas sugeridos, alguns símbolos que aparecem na obra comportam até mais de uma interpretação possível. É notório ainda que, nesta obra, o autor dê ensejo para reflexões e discussões múltiplas sobre Filosofia Política, História, Epistemologia, Crítica sociocultural, Mentalidade e práxis revolucionária, Cosmologia e Teologia.


Apesar do subtítulo, o livro não narra um “pesadelo” em sentido comum. “Pesadelo”, aqui, pode fazer referência aos percalços e fadigas da busca por sentido que o homem empreende no mundo fenomênico, crendo estar em vigília e em plena realidade. Elfes relaciona este subtítulo ao fato de que, nos pesadelos, o que mais nos apavora muitas vezes é a sensação angustiante de não termos controle algum em uma situação de suspense ou perigo; o medo gerado pelo controle que nos escapa é uma sensação que perpassa a trama do romance, como é a própria vida do homem sobre a Terra, que frequentemente escapa à previsão e à lógica humanas, e não se deixa dirigir como nós gostaríamos, uma vez que é cheia de altos e baixos, saúde e doença, momentos alegres e deprimentes, acontecimentos incompreensíveis e outros plenos de significado.

Grande parte das interpretações que apresentaremos aqui estão num vídeo do Prof. Henrique Elfes[1] que pode ser achado no youtube. No vídeo, o Prof. Elfes desvela muita coisa da rica simbologia deste romance, embora na forma de uma conversa bastante livre e informal com seus alunos. Neste artigo, tentarei apresentar, com um pouco mais de precisão conceitual e de forma um pouco mais correlata, aquilo que o Prof. Elfes expõe informalmente no vídeo, além de acrescentar, claro, as minhas próprias ilações sobre a mensagem de fundo da obra. 

G. K. Chesterton, escritor e filósofo
No momento em que Chesterton escreve esta obra, de acordo com o Prof. Elfes, ele não era um cristão convicto, mas estava numa “fase de transição”. É possível que estivesse com diversas questões ainda não resolvidas que talvez o fizessem transitar entre cristianismo, deísmo e agnosticismo. Os problemas teológicos que suscita no livro indicam, contudo, que o autor compreendia bem o papel social do cristianismo como esteio ético-cultural da liberdade ocidental e enxergava, na sua doutrina, uma resposta admissível para alguém em uma busca honesta e sincera pela verdade universal.
Nos primeiros capítulos do livro prevalece a narrativa típica de romance policial mesclada com elementos de crítica sociocultural e político-ideológica de tipo orwelliano[2]. Nos últimos capítulos, Chesterton provavelmente se inspirou nas dramatizações paralitúrgicas[3] que serviam como introdução aos ofícios religiosos solenes na Idade Média[4], uma vez que diversas figuras teológicas emergem do enredo.

Para assimilar bem a mensagem latente na obra, convém compreender o mais profundamente possível alguns conceitos, como o de “anarquia”. Na Política, “anarquia” é negação de toda e qualquer forma de governo e de todo e qualquer tipo de sociedade estruturada por leis; uma postura política antigoverno e antinômica (contra as normas/leis). Na Filosofia, an-arché é a negação do princípio fundamental originário e estruturante (arché) que os primeiros filósofos da antiguidade já buscavam.

O primeiro personagem relevante a aparecer é Lucian Gregory, um poeta excêntrico, anarquista em sentido lato (da arte à política), propagandista da subversão, ícone da mentalidade revolucionária. Sua fisionomia retrata o caráter do seu discurso ideológico. Chesterton descreve o poeta anarquista com belos cabelos ruivos angelicais que servem de moldura a um rosto “grosseiro e brutal”, “desdenhoso e zombeteiro” (p. 09).

À primeira vista, o que o autor quer reproduzir neste personagem é a face paradoxal da arte/cultura revolucionária, na qual motivações pretensamente nobres, justas e belas emolduram verdadeiras aberrações estéticas e éticas. Gregory é um pregador da arte anárquica e um arauto do caos, para quem a verdadeira arte repousa na desordem e na imprevisão. (OBS.: Este personagem de Chesterton pregou a “arte desconstrucionista” bem antes de figuras como Duchamp aparecerem expondo bizarrices em galerias e inaugurarem a face mais grotesca da arte contemporânea[5])
Depois aparece Gabriel Syme, poeta também de aparência excêntrica (cabeleira amarela e barbicha pontuda), que antagoniza Gregory. Syme, ao contrário de Gregory, defende que a revolta contra as convenções e a imprevisão não são poéticas, mas que poéticas são, sim, a ordem, o êxito de um planejamento construtivo, a saúde e a vitória do esforço humano sobre o caos. Aí se enceta uma discussão entre os dois que tem lugar num despretensioso jardim doméstico de um bairro residencial. 

Syme, após contrariar a opinião de Gregory sobre o caráter da verdadeira arte, questiona a seriedade do anarquismo do seu opositor. Este, sentindo-se desafiado, leva Syme sigilosamente a um bunker (Cap. 2) cheio de armas, escondido debaixo de um bar insuspeito. Gregory faz isso apenas para provar para Syme, por vaidade e orgulho ideológico, a seriedade sua e do seu grupo anárquico.


Syme pergunta se Gregory e seu grupo pretendem derrubar o governo. Gregory responde que eles querem, na verdade, “abolir Deus” (p. 25), acabar com todas as “arbitrárias distinções” entre vício e virtude, honra e traição, direitos e injustiças; trata-se de um anarquismo igualitarista profundamente radical e que visa destruir os fundamentos mais basilares da ordem constituída. Greg revela também que há um Conselho Central Anarquista composto por sete membros eleitos pelas células anarquistas locais. Cada um destes membros recebe o codinome de um dia da semana. 

Então, Syme reconhece a seriedade do seu opositor intelectual, mas o interroga sobre a razão de ele alardear seu anarquismo publicamente na sua vizinhança, em vez de ocultar suas ideias e intenções subversivas. Lisonjeado, Gregory lhe conta que o líder do seu grupo anarquista, chamado de “Domingo”, ensinou-lhe que o melhor disfarce seria agir como um anarquista mesmo, pois ninguém leva a sério um poeta anarquista falador e as mães até o deixariam guiar o carrinho de seus bebês! (OBS.: É uma realidade! No Brasil, figuras como Luciana Genro, Lula, Rui Pimenta, Mauro Iasi e o finado Plínio de Arruda Sampaio, que era admirado até por gente da cúpula da CNBB, são apoiados pelas elites e vistos pelas massas como inofensivos idealistas excêntricos ou, nos melhores casos, como “sugadores de dinheiro público”, mas nunca como sociopatas que podem afundar o país no caos social ou num mar de sangue.)
Em seguida, Gregory conta a Syme que os membros de sua célula anarquista estavam para chegar e que ele provavelmente seria eleito o “Quinta-feira”, um dos sete militantes que integram o Conselho Central Anarquista. Então, Syme lhe revela que também na Scotland Yard (polícia metropolitana de Londres) usa-se o expediente de se disfarçar de poeta excêntrico, revelando o seu disfarce após fazer Greg prometer que não contaria o seu segredo a ninguém.

Em seguida, os anarquistas batem na porta do bunker e Greg, assustado, aponta uma arma para Syme, mas este o convence a não matá-lo nem denunciá-lo, a ficar fiel à sua promessa, fazendo-o crer que cedo ou tarde ele mesmo se entregaria. Começa a reunião, os anarquistas recém-chegados estranham a presença de Syme, mas este lhes diz que é um delegado enviado pelo Domingo para fiscalizar a votação. Todos caem na farsa e Greg permanece calado, honrando sua palavra de não contar o segredo de Syme (uma atitude estranha pra um militante radical de esquerda, mesmo pra um militante fictício!). 

Começa a eleição do novo Quinta (o anterior era contra o consumo de leite por ter pena das vacas, mas explodia pessoas em atentados terroristas – “A crueldade indignava-o. Era homem de virtudes e méritos.” Tal como Lênin, Guevara, Prestes, Marighela, etc.). A certa altura, um velho militante, “talvez o único trabalhador real que ali se encontrava, sugere o nome de Greg para o posto de Quinta. Cínico, Greg profere um discurso no intuito de dissuadir o policial presente a vê-lo como uma ameaça séria. Em vez disso, Greg procurar pintar os anarquistas como idealistas “inofensivos e mansos” que são “caluniados e perseguidos” (p. 38) como os primeiros cristãos o eram (!)

Um camarada rude, chamado Whiterpoon, contesta o seu discurso de mansidão (p. 39) e segue-se um engraçado debate entre camaradas: um honesto em suas intenções violentas, outro dissimulado e, por isso mesmo, ainda mais perigoso. Whiterspoon é um aloprado, um revolucionário sincero (sic) do tipo que costuma atrapalhar a farsa dos outros. 

Syme se levanta, contraria as palavras mansas de Greg, defende um anarquismo violento (p. 40ss), propõe-se como candidato e acaba eleito para ser o “Quinta”, sem que suspeitem que ele é um policial disfarçado. Greg espuma de raiva, mas mantém sua palavra, enquanto os demais aclamam o radicalismo defendido por Syme, o mais novo integrante do “Conselho dos Sete Dias”.

No capítulo IV, o autor conta, em narração retrospectiva (flashback), como Syme se tornou um detetive especial. Tendo crescido sob o assédio de posturas ideológicas extremas (com uma mãe vegetariana e demasiadamente puritana de um lado e, do outro, um pai tão excessivamente impulsivo que chegou à beira de defender o canibalismo), Gabriel optou pelo conservadorismo e o bom senso. Sua opção enérgica pelo senso comum e pela tradição era uma reação espontânea gerada pelo tormento dos extremos que o perseguiram durante sua vida. Certa vez, presenciou um atentado com dinamites, cometido pelos anarquistas, que resultou em vidraças estilhaçadas e rostos ensanguentados. Sua aversão pela desordem moderna fez dele um reacionário furibundo e até “quixotesco”, profundamente preocupado com a ameaça representada pelos anarquistas, enquanto a maioria dos seus contemporâneos continuava os via apenas como “sujeitos mórbidos que combinam ignorância com intelectualismo”.
Numa noite em que caminhava sozinho e absorto em suas considerações contra-revolucionárias, Syme é abordado por um guarda, provavelmente devido à sua aparência desordeira de ideólogo excêntrico imerso em preocupações ideológicas. Logo após trocarem as primeiras palavras, Syme descobre que aquele não era um policial comum. O protagonista encontra nele um aliado ideológico. O guarda lhe diz coisas que correspondem fortemente às suas convicções e lhe abrem perspectivas e possibilidades novas na sua peleja contrarrevolucionária. Basicamente, o que o policial faz Syme saber é que:

1) As inovadoras e aberrantes noções subversivas das classes intelectuais são mais nocivas à humanidade do que os meros distúrbios da vontade humana.

2) As elites cultas de mentalidade corrompida são mais perigosas para a sociedade em geral do que os criminosos comuns. “Afirmamos que o criminoso mais temível destes tempos é o filósofo moderno inteiramente bárbaro. Comparados com ele, arrombadores e bígamos são homens de moralidade perfeita.”, diz o guarda.

3) Há uma conspiração contra as instituições da família e do Estado promovida pelas classes artísticas e científicas, e seus corruptores projetos subversivos já estão em curso.

4) No mundo moderno, as forças policiais abandonaram sua função mais digna e necessária: punir os criminosos político-ideológicos que atentam (materialmente ou discursivamente) contra as instituições fundamentais que asseguram a paz e a ordem social. Isto é, já não existem mais esforços para “punir os poderosos traidores do Estado e os poderosos heresiarcas da Igreja”. O protagonista chega a dizer: “Os modernistas dizem que não devemos punir os heréticos. Minha única dúvida reside em saber se temos o direito de punir alguém mais.” (p. 55-56). [6] A ideia subjacente é que, se é a sabotagem dos pilares institucionais, espirituais e morais da sociedade que provoca o caos social (hoje, T. Dalrymple o atesta com farta observação empírica), então os promotores daquela sabotagem (os “hereges”, no sentido lato de outra obra, de crítica filosófica, escrita por Chesterton) deveriam ser punidos com rigor igual ou superior ao rigor aplicado aos criminosos comuns que apenas atualizam (transformam em ato) o caos teórico e potencial.

5) Para combater este movimento sabotador, fora criada uma divisão especial na Scotland Yard: uma corporação de detetives que devem ser, ao mesmo tempo, investigadores policiais e filósofos, a fim de detectar os focos das “heresias” e vigiar as práticas dos revolucionários. Mais precisamente, o objetivo seria prever e impedir crimes motivados por fanatismo ideológico através da arguta observação de eventos subversivos (inclusive saraus artísticos) e publicações com mensagens de violência revolucionária (inclusive poesias).

Convidado pelo policial a se juntar a essa corporação especial de polícia, Syme se entusiasma e decide se tornar um investigador-filósofo. No depto. de polícia, o comandante-recrutador dos investigadores-filósofos recebe-o na penumbra, sem deixar que a luz revele sua fisionomia. Syme nota apenas que se trata de um homem muito grande e com voz forte. Misterioso e, ao mesmo tempo, encorajador, ele diz a Syme que capacidade e experiência não são pré-requisitos para exercer este ofício, basta querer fazê-lo e aceitar ser mártir (p. 59).
Finda a retrospectiva que conta como Syme se tornou um detetive, a narrativa volta ao desenrolar dos fatos após a inusitada eleição do protagonista para o posto de Quinta-feira. O policial disfarçado é, então, introduzido silenciosamente em uma reunião do Conselho Central Anarquista, cujos membros estranhamente não o interrogam sobre nada, apenas “saúdam-no com uma chacota jovial, como se o conhecessem há muito tempo” (p. 68). 

Nas páginas seguintes, Chesterton descreve as peculiaridades bizarras dos novos “camaradas” de Syme, sempre fazendo com que suas aparências sejam medonhas em algum sentido. O Domingo, sobretudo, além de ser um homem de proporções físicas anormalmente grandes, parece a Syme um sujeito excessivamente poderoso, sagaz e capaz de crueldades inimagináveis.

Caminhando para o remate da narrativa, Syme vai admitir que o detalhe que o aterrorizou de fato na figura do Domingo foram as suas costas, a nuca, o lado avesso do Domingo, que ele viu primeiro. Quanto ao seu rosto, embora fosse colossal, Syme afinal admitiu ter visto bondade nele. Segundo Elfes, as costas do Domingo que aterrorizam Syme na primeira vez em que ele o vê (p. 209-210) são a alegoria da natureza, monstruosa e aparentemente caótica, que oculta o mistério do que há por trás dela (frente) e acima dela (rosto), isto é, do que lhe é subjacente e superior.

O “Conselho dos Dias” deixa Syme tão amedrontado que ele se sente como “num navio cheio de piratas armados”. Entretanto, os seus membros não se reuniam num lugar oculto e sombrio, mas seguiam à risca a estratégia de disfarce preconizada pelo presidente e seguida por Gregory: expor-se totalmente a fim de disfarçar-se totalmente. Falavam de atentados a bomba enquanto riam sentados ao redor de uma mesa de restaurante de frente para uma praça!

O conselho deliberava sobre um atentado que deveria eliminar o presidente da França e o czar russo numa ocasião próxima em que os dois se encontrariam em Paris. Syme, porém, preocupava-se nessa hora mais com a sua própria segurança. O pavor que sentia ao encarar o Domingo leva-o a cogitar a possibilidade de cair fora dali e acionar um policial que avista na praça. O autor sugere que o aspecto e a personalidade de Domingo poderiam fazê-lo ser adorado pelos “modernistas” que cultuam “a inteligência e a força” associadas à “brutalidade”, características que o protagonista confessa ser covarde o bastante para temer, mas não tão covarde que as admire (como os “modernistas” cultuadores de tiranos que o autor aqui quis criticar).[7]

Syme, contudo, consegue manter a calma e preservar o seu disfarce ante o sinistro Conselho dos Sete Dias. Ele adquire coragem ao ouvir o som longínquo de um realejo que o faz pensar na cultura singela do povo simples que contrasta com as ambições destrutivas do macabro conselho. Então, ele passa a se ver como representante e defensor do povo simples e do seu senso comum – simbolizados pela música do realejo – e aceita o risco de morte, enchendo-se de valentia heroica (p. 81s), para ir até as últimas consequências na sua grave missão. Aqui, e não antes, é que ele de fato aceita o risco do martírio.
Fake movie poster feito por uma fã - não há um filme baseado fielmente na obra
Entre muitos incidentes reveladores, os seis dias feriais acabam combatendo entre si até descobrirem que todos eles – todos os membros do conselho anarquista, exceto o terrível Domingo – eram igualmente investigadores infiltrados a serviço da mesma divisão de polícia e que haviam sido todos admitidos pelo mesmo comandante de voz poderosa que os entrevistara naquela sala escura na qual nada se podia divisar do recrutador.  Decididos a capturar o presidente do Conselho, os seis vão atrás dele juntos.

Domingo, entretanto, deixa os seis detetives estarrecidos quando revela ser ele próprio o comandante que recrutou cada um deles naquela sala escura. E os desafia, afirmando que eles nunca poderão capturá-lo ou entendê-lo. Domingo afirma-se como o indecifrável, um enigma que está além da essência das coisas visíveis, alguém que os sábios, poetas e filósofos têm procurado, em vão, decifrar; um ser inefável, apofático, tão além da compreensão dos homens que, dele, nada se poderia falar, como dizia Wittgenstein sobre Deus...

"Pois eu lhes digo que é mais fácil descobrir a verdade oculta na última árvore e na nuvem mais altaneiro do que descobrir o que eu sou. Entenderão o mar, e eu permanecerei um enigma; saberão o que são as estrelas, mas não saberão o que eu sou." (cap. 13, p. 192, editora Germinal, trad. Vera Lúcia Rodrigues)

Agora, mais do que nunca, eles exigem respostas. Então, o Domingo escapa deles com uma agilidade, leveza e velocidade que seriam impensáveis para um homem daquele tamanho e com aquela idade. Sem esmaecer, os seis investigadores, já despidos de seus disfarces de anarquistas, correm para capturar Domingo numa perseguição feroz pelas ruas de Londres. Enquanto o seguem, logicamente, os seis o veem de costas, como cientistas e filósofos que, sentindo-se perplexados (thaumazein) pela natureza, acossam-na para obter respostas sobre o sentido do universo. Caçam a natureza naturada (physis, fenômeno) esperando descobrir a realidade sobre a Natureza naturante (arché, númeno, Deus), no conceito de Sto. Agostinho.
Durante esta perseguição, o Domingo ora lhes atira bolinhas de papel com mensagens incompreensíveis, ora lhes vira o rosto para lhes fazer caretas, e até acaba fazendo a grupo dos seis ir parar num zoológico, onde Syme, observando os bichos ao redor, se impressiona com certos enigmas da natureza, como o ilógico bucero (p. 198) – pássaro cujo bico é maior do que o resto do corpo – intuindo certa criatividade brincalhona inerente à physis. (É a sensação de nonsense e comicidade que podemos ter ao observar a Criação.). Por fim, Syme começa a notar que Domingo se comporta como um pai que brinca de esconder com seus filhos (p. 211).


A perseguição termina com os seis chegando esfarrapados ao reino do Domingo, depois de o seguirem até lá sem desistir (“completaram a corrida” ... II Tm 4,7) e, no palácio dominical, são recebidos com deferência e amabilidade, e são convidados para um grande baile festivo para o qual vestem finos trajes que representam os seis primeiros dias da Criação. Os demais convivas, que os recebem alegre e solenemente, estão fantasiados como as outras criaturas naturais. É a valsa da criação. Domingo os recebe, eles se sentam em tronos e Domingo revela-se como “a paz de Deus”.


No capítulo derradeiro, aparece o recorrente problema do paradoxo entre o sofrimento humano e a “paz de Deus”, ou: a “inércia” de um Deus supostamente bondoso ante o padecimento clamoroso de suas criaturas. Um problema que remonta a Epicuro e nos remete à Teodiceia de Leibniz e de outros filósofos e teólogos que procuraram conciliar estes dados aparentemente contraditórios. O segunda-feira diz: “Se desde o começo você era nosso pai e nosso amigo, por que era também nosso maior inimigo? Nós nos lamentávamos e fugíamos aterrorizados; o ferro penetrou em nossas almas... e você é a paz de Deus! Oh, eu posso perdoar a Deus Sua ira, embora ela destrua as nações; mas não posso perdoar a Deus Sua paz.” (p. 224)

Lucian Gregory
Então, Gregory faz uma satânica aparição diante deles. “Eis o único verdadeiro anarquista!”, diz Syme. E Greg confirma: “Sim, sou o verdadeiro anarquista. Sou um destruidor. Destruiria o mundo se pudesse.” E faz um discurso raivoso e moralizador, acusando os sete de pretenderem governar tudo comodamente, sem nunca terem experimentado a agonia e o sofrimento. Syme, indignado, levanta-se para responder à acusação:


Compreendo tudo – bradou – tudo quanto existe. Por que todas as coisas desta terra vivem em guerra umas com as outras? Por que cada ínfimo ser deste mundo tem de lutar contra o próprio mundo? [...] Pela mesma razão que eu tinha para estar só no terrível Conselho dos Dias. Assim, cada coisa que obedece à lei pode partilhar da glória e do isolamento do anarquista. [...] Assim, a mentira de Satã pode ser lançada à face deste blasfemo e assim, pelas lágrimas e pela tortura, podemos conquistas o direito de dizer a este homem: ‘Mentes!’...” (p. 227s)


Syme compreende que as pessoas e demais criaturas sofrem não à toa, mas para vencer e desmascarar o Mal, para mostrar que é possível optar livremente pelo bem, provando que Satanás não tem pretexto algum para sua rebeldia e perversão, pois mesmo o homem limitado e sofredor, exilado de qualquer paraíso de comodidades, pode optar e lutar pelo Bem, pode ser bom!

Restava a Syme apenas uma dúvida: será que o Domingo também já havia passado pela prova do sofrimento ou estivera eternamente seguro, acomodado e invulnerável em seu trono?... Teria ele sofrido como os outros dias?... 

Quando Syme se volta para o Domingo e lhe faz a pergunta, o rosto do interrogado começa a se expandir assustadoramente até encher todo o firmamento e envolver tudo em escuridão. (Ele torna-se "grande demais para ser visto", diz Elfes, como um ser que, por estar em todo lugar, não pode ser divisado em lugar nenhum.) Logo depois, Syme ouve uma voz distante falar:

"Podeis beber na mesma taça em que eu bebo?"

...


Syme representa quem?

Para mim, Syme representa todo homem que dá o primeiro passo para combater contra o caos, a favor da verdade e da justiça, e acaba desencadeando uma luta contra as aparências, contra a natureza e contra o medo, tendo que aceitar perder a vida e empreender uma exaustiva e, às vezes, confusa busca para, no fim da carreira, chegar à glória e descobrir que o rosto temível do mentor da destruição, na verdade, era um véu que ocultava uma face benévola, a paz de Deus.

O Prof. Elfes deduz que a busca e o elã de Syme seriam uma alegoria da ciência – ou da busca científica por padrões e por uma ordem não-aparente que possa dar sentido ao caos aparente da natureza. Faz sentido: Syme é um veemente defensor da ordem e da previsão, alguém que quer por fim à anarquia e que persegue (tenta decifrar) o senhor da anarquia, que se revela, no final, como senhor da harmonia.

Na última cena, Syme aparece conversando amistosamente com Gregory sobre um assunto banal. É a volta à trivialidade cotidiana depois dos nossos quixotescos esforços intelectuais para compreender o Domingo.



Voltando ao problema do sofrimento


“Por que eu sofri tanto?...”, é a pergunta que Gogol faz ao Domingo. E é a grande pergunta do Livro de Jó e uma das mais recorrentes perguntas do drama humano sobre a Terra. (E mesmo os ateus fazem essa pergunta, como se acreditassem que há alguém no cosmos que os ouve e que poderia ter evitado o sofrimento deles.)

Deus não deu a Jó uma resposta direta, não explicou as suas razões para tê-lo provado tão duramente. Ele apenas mostrou a Jó o quanto o juízo humano é inapto para entender as razões da conduta divina. Deus não se explica. Não deve explicações. Ele espera que confiemos n'Ele, que acreditemos que os desígnios d'Ele são sempre desígnios de amor. O diabo é quem nos tenta a duvidar da bondade dos planos de Deus.
Santo Antão e, atrás dele, os demônios que o tentavam
“Diz-se que Santo Antão do Deserto certa vez estava perdido na meditação sobre as profundezas dos juízos de Deus. Por essa razão, ele rezou: “Senhor, como pode ser que alguns morrem em tão pouco tempo e outros vivem além da velhice? E por que alguns passam necessidades e outros são ricos e possuem tantos meios de conservarem sua saúde? Por que há injustos tão ricos e justos que são tão oprimidos pela pobreza?” E uma voz veio a ele, dizendo: “Antão, volta teus olhos sobre ti mesmo, pois estes são os juízos de Deus e o conhecimento deles não cabe a ti.” Em última analise, este tipo de silêncio é obtido quando aprendemos a interiorizar esta exortação: “Parai e reconhecei que EU sou Deus.” (Sl 45(46),10).” (O Silêncio da Vontade II, Pe. Basil Nortz)

A Santa Catarina de Sena, Deus diz: “O sofrimento temporal que o homem passa no mundo é como a ponta de uma agulha.” (Isto é, do ponto de vista da eternidade, tudo o que sofremos aqui é como uma breve alfinetada. O sofrimento eterno no inferno, este sim, deve nos preocupar.).

Com seu característico humor, o Prof. Elfes diz: “Ao homem que pede explicações a Deus por seu sofrimento, Ele no máximo diz: ‘Você não tem que entender nada. Comparado comigo, você é uma pulguinha! Baixa a crista, neguinho! Aguenta! Desenvolva a paciência e a fortaleza e aprenda a lidar com o sofrimento!’” 

Penso que este romance é útil para nos lembrar que, quando a história e a natureza nos parecem absurdas, excessivamente violentas, caóticas, desgovernadas e sem sentido, talvez estejamos apenas vendo a Obra de Deus pelas costas. Com facilidade, o homem se esquece de que não tem uma visão da totalidade, não possui a visão sub specie aeternitatis (Spinosa). Em nossa perspectiva situada e limitada, simplesmente não temos condições de julgar a Criação ou a Providência divina, pois somos como os prisioneiros da caverna de Platão ou como o Santo Padre Pio menino que, sentado num banco baixo, via sua mãe bordar no pano algo que, de baixo, lhe parecia feio e disforme, mas que se revelava belo e harmônico quando ela se abaixava para lhe mostrar a parte de cima do bordado.

Respostas além da ciência empírica

O último transporte que Domingo usa para fugir é um balão. (Embora lento – se comparado aos aviões atuais –, o balão é um símbolo da ascensão para o alto e da ampliação dos horizontes.) Para seguir o fugitivo, os detetives-filósofos acabam tendo que manter os olhos fixos no céu e se embrenhar por terras e matagais antes desconhecidos para eles. É como se o mistério divino desafiasse os investigadores a persegui-lo para além dos limites territoriais conhecidos. Ou seja, a lógica divina desafia a ciência do homem para além do território que ela conhece imediatamente, para além do mundo físico/fenomênico.
Cada um dos personagens que encarnam os dias feriais pode ser a representação de um ramo da ciência dedicado à investigação da natureza criada, considera o Prof. Elfes. Assim, Syme, por exemplo, seria um ícone do astrônomo, uma vez que no quarto dia do Gênesis foram criados os astros do céu. O Marquês seria o símbolo dos que estudam a geologia (terra) e a botânica (vegetação). O Dr. Bull, cujo próprio nome evoca um animal terrestre (Bull = Boi, em inglês), seria um zoólogo.

Para concluir este artigo, que já se alongou demais, recordemos os principais personagens desta fantástica obra e os possíveis significados do perfil de cada um deles.


Monday (Segunda-feira) – Secretário: Primeiro dia da Criação - “Fiat Lux.” A luz primordial e informe. Pode representar a ciência da Física.

Tuesday (Terça-feira) – Gogol: Separação das águas (em estado gasoso no firmamento e em estado líquido no solo). Química.

Wednesday (Quarta-feira) – Marquês: Criação da Terra e da vegetação. Geologia e botânica.

Thursday (Quinta-feira) – Gabriel Syme: O dia em que são criados os astros celestes – a luz tomou 
forma (alegoria da ordem): sol, lua e estrelas. O Arcanjo S. Gabriel foi quem anunciou que a Luz divina tomaria forma de matéria humana. Astronomia.

Friday (Sexta-feira) – Pseudo-Prof. De Worms: vitalidade sob o disfarce da decrepitude, vida latente sob a aparência de agonia - como na Sexta-feira Santa, quando a imagem trágica da morte velou a Fonte originária de toda vida. Filosofia e Ciências Humanas.

Saturday (Sábado) – Dr. Bull: Múltiplas formas de vida animal terrestre. Zoologia.

Sunday (Domingo): Dia do descanso/paz de Deus, dia no qual a Criação é por Ele contemplada.


Lucian Gregory: o único que realmente quer instaurar o caos na história e na criação, mas que tem seus planos frustrados pelo Domingo, que está sempre no controle e, para sobrepujar o rebelde, posa  até de Senhor da Destruição, embora seja o doador de todo bem e de toda paz.

A ruiva irmã do Gregory poderia ser símbolo da paixão, das atrações terrenas que nos fazem esquecer as questões e preocupações existenciais ou que nos hipnotizam e entorpecem até termos pesadelos sobre anarquias, revoluções, etc. Para Elfes, ela seria uma espécia de “Beatriz” (Divina Comédia, Dante) para o Syme: ele se apaixona por ela e o amor que sente por ela leva-o a Deus.

Na obra de Dante, Beatriz é aquela que leva o poeta a contemplar as realidades celestiais



[1] Graduado em Letras pela PUC-PR, desenvolve pesquisa e ensino extra-acadêmico de Filosofia e Humanidades. É vinculado ao IFE (Instituto de Formação e Educação), ao Centro Cultural do Sumaré, ao Círculo de Estudos Políticos e à Revista Dicta & Contradicta.

[2] George Orwell, escritor crítico da mentalidade política totalitária, autor de Animal Farm e 1984.

[3] No contexto da liturgia cristã, “paraliturgia” é toda expressão devocional ou catequética que não faz parte do culto litúrgico oficial, mas se relaciona tematicamente com ele.

[4] Um pageant, no teatro inglês medieval, era uma peça em que se usavam cenários montados em carroças para encenar, geralmente antes das Missas, cenas bíblicas ou de vidas de santos relativas à festa litúrgica celebrada na ocasião.

[5] Embora, verdade seja dita, não seja a arte contemporânea composta apenas de obras grotescas e nonsense, como se poderia imaginar – vide exposições do Instituto Inhotim e o doc. Why Beauty Matters, de R. Scruton/BBC.

[6] Esta postura do personagem evoca uma questão ética e política controversa: seria justo e viável, no contexto atual, criminalizar ideias perigosas e punir seus propagadores?


[7] Como não pensar, aqui, nos cultuadores de Lênin, Hilter e Robbespierre? Como não inferir que Chesterton estivesse se referindo a ideólogos como Bernard Shaw – socialista que defendeu o extermínio dos que não produzem tanto quanto consomem – e a outros seus contemporâneos revolucionários?

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Parabéns pela resenha, consegui compreender melhor o livro através de seus escritos!! Abraço.

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