quinta-feira, 3 de março de 2016

Guillebaud e seu "Inventário após o Naufrágio"

Jean-Claude Guillebaud
Com o título Inventário após o Naufrágio, Guillebaud inicia o capítulo primeiro de A Reinvenção do Mundo recordando os assassinatos em massa que tornaram o século passado um século de horrores, de barbáries inomináveis. Barbaridades cometidas não obstante todo o esclarecimento que se acreditava ter alcançado, toda a tecnologia desenvolvida após a Revolução Industrial, todo o discurso humanitário fajuto difundido após 1789, toda a ciência contemporânea, toda a empáfia com que os intelectuais europeus de fins do século XIX e início do séc. XX falavam dos povos do passado, dos costumes e da mentalidade dos seus ancestrais. Pensava-se ter atingido um nível de civilização elevadíssimo e esclarecidíssimo, apostava-se no progresso, na sociologia e nas demais ciências que prometiam resolver os problemas do mundo. Mas o que toda essa ilustração desprovida de valores espirituais trouxe foram os genocídios, as atrocidades contra os inocentes, os homicídios em escala industrial, a violência e a insensibilidade ante o sofrimento alheio.

É interessante que Guillebaud não tenta, como tantos outros estudiosos que se prestam a analisar o século XX, omitir ou mesmo amenizar a culpa da esquerda marxista pseudo-democrática por grande parte daqueles crimes. Guillebaud não deixa de citar o massacre de Katyn, os expurgos em massa do Khmer Vermelho no Camboja, a genocídio da revolução cultural chinesa, os gulags, inclusive o de Kolyma, e a “aliança de uma parte da esquerda francesa com o bolchevismo” (GUILLEBAUD, p. 37). Isso nos permite concluir que, para o bem da memória histórica ocidental, Guillebaud não fez parte da chamada “operação ‘grande parada’”, descrita por Jean François Revel como um empenho de “uma parte importante da elite universitária, jornalística e política” para omitir, encobrir, contradizer ou atenuar os crimes cometidos pelos regimes de inspiração socialista (REVEL, A Grande Parada, 2001, p.147).

As ideologias coletivistas e totalitárias certamente foram o carro-chefe que puxaram a escalada de violência. Do nacional-socialismo de Hitler ao maoísmo na China, os regimes totalitários derramaram muito sangue em nome de um suposto bem da coletividade. Com o pretexto de instaurar uma sociedade utópica, uma ordem social justa e próspera, sem “burgueses exploradores” ou “judeus parasitas”, tais regimes subiram ao poder não sem ter recebido apoio de grande parte da população de seus respectivos países. E isso certamente nos diz algo sobre o potencial destrutivo das ideologias baseadas em uma mentalidade historicista e revolucionária. É característico desta mentalidade o ímpeto de demolir completamente a ordem social existente, aceitando sacrificar os direitos individuais dos cidadãos do presente para erigir um mundo ideal para os cidadãos do futuro.
Para atingir tal fim, o revolucionário geralmente considera imperativo extinguir o patrimônio de direitos e valores éticos e espirituais herdados das gerações passadas, uma vez que, eles só serviriam para legitimar o domínio dos opressores a serem derrubados. Por isso, antes de convocar o proletariado para a luta, Marx e marxistas como Lukács, Gramsci e Althusser acharam por bem primeiro imprecar contra a “moralidade burguesa”, a “religião burguesa”, os “costumes burgueses”, considerados empecilhos para o advento da sociedade sem classes. Neste sentido é que os movimentos de contracultura do pós-guerra não foram, como supõe Guillebaud, uma reação aos horrores da guerra, mas apenas a continuidade de um projeto de subversão cultural engendrado pela mesma mentalidade revolucionária que foi o motor da guerra. A “moral burguesa”, rechaçada pelos rebeldes juvenis de 1968 e pela arte revolucionária “visceral” que surgiu com a contracultura, já havia sido rechaçada antes por um revolucionário cuja imagem se tornou, digamos, impopular nos dias hoje:

“é a pulsão sem limites nem obstáculos de qualquer espécie (e sobretudo sem moral!) que a propaganda nazista vai exaltar. ‘Nossa revolução’, jura o Führer, ‘não tem nada a ver com as virtudes burguesas. Somos a explosão da força da nação. Por que não dizer da força de suas vísceras?’”. (GUILLEBAUD, p. 45)

É notório que, após a guerra, o projeto de desconstrução cultural reformula-se e adquire uma roupagem “libertária”. Marcuse, Beauvoir, Sartre, entre outros influentes intelectuais na França, nos EUA, no Brasil e em outras nações do Ocidente, instigaram os estudantes a quebrarem os paradigmas, a desprezar os preceitos morais, a lutar contra tudo o que a geração anterior tinha como valor espiritual, em nome de uma nova utopia, da paz e do amor, de uma sociedade sem normas “repressoras” e sem religião, mais livre, igualitária e solidária. Assim, adotou-se uma nova estratégia de ação política sem, contudo, abandonar parte do mesmo ímpeto destrutivo que movia, já em 1789, a “ilustrada” Revolução Francesa, e que estimulou os revolucionários jacobinos a afogarem tantos inocentes em Nantes, massacrarem mulheres e crianças dos camponeses resistentes em Vandée e decapitarem na guilhotina até mesmo as inofensivas monjas carmelitas de Compiègne; tudo em nome da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade.

Guillebaud explicita bem esse caráter deletério do coletivismo que ficou tão evidente no século passado ao dizer que aqueles horrores “desqualificaram o próprio holismo, a prioridade dada ao ‘nós’ sobre o ‘eu’; prioridade que por si só havia tornado possível este voraz consumo de homens pelo Minotauro das batalhas.” Interessante também é a crítica que Guillebaud faz ao “espírito de Munique”, àquele pacifismo que, por omissão, acaba sendo cúmplice das perversidades que não tentou deter. Edmund Burke, no século XVIII, já dizia que “para o triunfo dos maus basta que os bons fiquem de braços cruzados”. Certamente, tolerar ideologias cujos princípios são intrinsecamente maléficos, negociar com líderes cujos objetivos são claramente perversos, e deixá-los seguir sua agenda tende a ser sempre um erro fatal. Erro maior ainda, entretanto, é desprezar completamente o legado espiritual, a experiência acumulada e os valores morais dos nossos antepassados:


“‘Foi no século XIX’, observava François Fruet, ‘que a História substituiu Deus, tornando-se todo-poderosa sobre o destino humano, mas é no século XX que vão ser vistas as loucuras políticas nascidas desta substituição’.” (GUILLEBAUD, p. 41)

Um comentário:

  1. Curiosamente(a propósito de negociar com ideologias perversas)hoje li uma frase num jornal atribuída ao primeiro ministro de França "a França será um centro de propagação de um moderado/correcto islamismo".

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