Jean-Claude Guillebaud |
Com o título Inventário após o Naufrágio, Guillebaud inicia o capítulo primeiro
de A Reinvenção do Mundo recordando os assassinatos em massa que
tornaram o século passado um século de horrores, de barbáries inomináveis.
Barbaridades cometidas não obstante todo o esclarecimento que se acreditava ter
alcançado, toda a tecnologia desenvolvida após a Revolução Industrial, todo o
discurso humanitário fajuto difundido após 1789, toda a ciência contemporânea,
toda a empáfia com que os intelectuais europeus de fins do século XIX e início
do séc. XX falavam dos povos do passado, dos costumes e da mentalidade dos seus
ancestrais. Pensava-se ter atingido um nível de civilização elevadíssimo e
esclarecidíssimo, apostava-se no progresso, na sociologia e nas demais ciências
que prometiam resolver os problemas do mundo. Mas o que toda essa ilustração
desprovida de valores espirituais trouxe foram os genocídios, as atrocidades
contra os inocentes, os homicídios em escala industrial, a violência e a
insensibilidade ante o sofrimento alheio.
É interessante que Guillebaud não
tenta, como tantos outros estudiosos que se prestam a analisar o século XX,
omitir ou mesmo amenizar a culpa da esquerda marxista pseudo-democrática por grande
parte daqueles crimes. Guillebaud não deixa de citar o massacre de Katyn, os
expurgos em massa do Khmer Vermelho no Camboja, a genocídio da revolução
cultural chinesa, os gulags,
inclusive o de Kolyma, e a “aliança de uma parte da esquerda francesa com o
bolchevismo” (GUILLEBAUD, p. 37). Isso nos permite concluir que, para o bem da
memória histórica ocidental, Guillebaud não fez parte da chamada “operação
‘grande parada’”, descrita por Jean François Revel como um empenho de “uma
parte importante da elite universitária, jornalística e política” para omitir,
encobrir, contradizer ou atenuar os crimes cometidos pelos regimes de
inspiração socialista (REVEL, A Grande Parada, 2001, p.147).
As ideologias coletivistas e
totalitárias certamente foram o carro-chefe que puxaram a escalada de
violência. Do nacional-socialismo de Hitler ao maoísmo na China, os regimes
totalitários derramaram muito sangue em nome de um suposto bem da coletividade.
Com o pretexto de instaurar uma sociedade utópica, uma ordem social justa e
próspera, sem “burgueses exploradores” ou “judeus parasitas”, tais regimes
subiram ao poder não sem ter recebido apoio de grande parte da população de
seus respectivos países. E isso certamente nos diz algo sobre o potencial
destrutivo das ideologias baseadas em uma mentalidade historicista e revolucionária.
É característico desta mentalidade o ímpeto de demolir completamente a ordem
social existente, aceitando sacrificar os direitos individuais dos cidadãos do
presente para erigir um mundo ideal para os cidadãos do futuro.
Para atingir tal fim, o
revolucionário geralmente considera imperativo extinguir o patrimônio de
direitos e valores éticos e espirituais herdados das gerações passadas, uma vez
que, eles só serviriam para legitimar o domínio dos opressores a serem
derrubados. Por isso, antes de convocar o proletariado para a luta, Marx e
marxistas como Lukács, Gramsci e Althusser acharam por bem primeiro imprecar
contra a “moralidade burguesa”, a “religião burguesa”, os “costumes burgueses”,
considerados empecilhos para o advento da sociedade sem classes. Neste sentido
é que os movimentos de contracultura do pós-guerra não foram, como supõe
Guillebaud, uma reação aos horrores da guerra, mas apenas a continuidade de um
projeto de subversão cultural engendrado pela mesma mentalidade revolucionária
que foi o motor da guerra. A “moral burguesa”, rechaçada pelos rebeldes juvenis
de 1968 e pela arte revolucionária “visceral” que surgiu com a contracultura,
já havia sido rechaçada antes por um revolucionário cuja imagem se tornou,
digamos, impopular nos dias hoje:
“é a pulsão sem limites nem
obstáculos de qualquer espécie (e sobretudo sem moral!) que a propaganda
nazista vai exaltar. ‘Nossa revolução’,
jura o Führer, ‘não tem nada a ver com as
virtudes burguesas. Somos a explosão da força da nação. Por que não dizer da
força de suas vísceras?’”. (GUILLEBAUD, p. 45)
É notório que, após a guerra, o
projeto de desconstrução cultural reformula-se e adquire uma roupagem
“libertária”. Marcuse, Beauvoir, Sartre, entre outros influentes intelectuais
na França, nos EUA, no Brasil e em outras nações do Ocidente, instigaram os
estudantes a quebrarem os paradigmas, a desprezar os preceitos morais, a lutar
contra tudo o que a geração anterior tinha como valor espiritual, em nome de
uma nova utopia, da paz e do amor, de uma sociedade sem normas “repressoras” e
sem religião, mais livre, igualitária e solidária. Assim, adotou-se uma nova
estratégia de ação política sem, contudo, abandonar parte do mesmo ímpeto
destrutivo que movia, já em 1789, a “ilustrada” Revolução Francesa, e que
estimulou os revolucionários jacobinos a afogarem tantos inocentes em Nantes,
massacrarem mulheres e crianças dos camponeses resistentes em Vandée e
decapitarem na guilhotina até mesmo as inofensivas monjas carmelitas de Compiègne;
tudo em nome da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade.
Guillebaud explicita bem esse
caráter deletério do coletivismo que ficou tão evidente no século passado ao
dizer que aqueles horrores “desqualificaram o próprio holismo, a prioridade
dada ao ‘nós’ sobre o ‘eu’; prioridade que por si só havia tornado possível
este voraz consumo de homens pelo
Minotauro das batalhas.” Interessante também é a crítica que Guillebaud faz ao
“espírito de Munique”, àquele pacifismo que, por omissão, acaba sendo cúmplice
das perversidades que não tentou deter. Edmund Burke, no século XVIII, já dizia
que “para o triunfo dos maus basta que os bons fiquem de braços cruzados”.
Certamente, tolerar ideologias cujos princípios são intrinsecamente maléficos,
negociar com líderes cujos objetivos são claramente perversos, e deixá-los
seguir sua agenda tende a ser sempre um erro fatal. Erro maior ainda, entretanto,
é desprezar completamente o legado espiritual, a experiência acumulada e os
valores morais dos nossos antepassados:
“‘Foi no século XIX’, observava François Fruet, ‘que a História substituiu Deus, tornando-se todo-poderosa sobre o
destino humano, mas é no século XX que vão ser vistas as loucuras políticas
nascidas desta substituição’.” (GUILLEBAUD, p. 41)
Curiosamente(a propósito de negociar com ideologias perversas)hoje li uma frase num jornal atribuída ao primeiro ministro de França "a França será um centro de propagação de um moderado/correcto islamismo".
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