sexta-feira, 24 de abril de 2015

O existencialismo e a salvaguarda do SER humano



O existencialismo antropológico levanta um problema filosófico interessante e, em certo sentido, bastante grave. Um problema que pode ter implicações sociopolíticas surpreendentemente sérias. Caso o leitor não esteja a par da oposição conceitual entre a antropologia filosófica essencialista e a antrop. filosófica existencialista, sugerimos uma pesquisa prévia por textos que sirvam de leitura introdutória sobre o assunto e, depois, acompanhe a nossa reflexão nos parágrafos seguintes.



Penso que, em grande parte dos casos, a admissão do existencialismo por muitos estudantes decorre de certa confusão vigente entre a noção clássica de essência e um determinismo antropológico de tipo fatalista. A concepção clássica de essência define, mas não acorrenta, categoriza, mas não determina. Ela não nega a possibilidade de autodeterminação. Do contrário, os medievais jamais poderiam tê-la conciliado com a noção de livre arbítrio. Se nossos “veneráveis” acadêmicos (pffrr) tratassem de desfazer essa confusão entre essencialismo e determinismo, penso que o existencialismo perderia muita força. Mas, infelizmente, não é do inter-esse deles fazer nenhuma distinção que enfraqueça certa práxis que é o escopo mal disfarçado das imposturas intelectuais todas.



Parece-me que a moção profunda que nutre o existencialismo é uma grande aversão a qualquer tipo de teleologia. Isto é, como o existencialista não quer concordar, por exemplo, com os filósofos antigos de herança socrática (aceitando a vida racional e virtuosa como finalidade última do homem), nem com os medievais (assumindo que a razão última de ser de todo homem é a plena união com o seu Criador), ele manda às favas toda concepção de essência porque sabe que ela implica numa ideia de causa final, da qual ele quer fugir custe o que custar. Então, ele nega a essência pra fugir da teleologia e enfatiza o “fazer-se na existência” para se justificar e viver sem ter que se preocupar em fazer qualquer esforço de adequação a qualquer finalidade essencial.



Além do mais, considero o existencialismo uma noção antropológica politicamente perigosa, uma vez que, ao negar uma essência comum a toda pessoa humana, pondo a ênfase naquilo que cada um "constrói" de si na própria história, pode-se acabar negando, junto com o estatuto ontológico de cada homem, seus direitos e deveres intrínsecos.



Imagino que, ao apoiar o nacional-socialismo alemão, Heidegger consolava sua consciência persuadindo-se de que os judeus eram meras escolhas existenciais de ganância, avareza e exploração do povo germânico, e não essências humanas intrinsecamente merecedoras de respeito, de liberdade e de vida!



Outro dia eu colocava o seguinte problema para uma das turmas para as quais leciono: um infrator da lei reincidente e culpado de crime grave com requintes de crueldade deve receber uma punição exatamente proporcional aos males que ele causou (isto é, considerando apenas suas escolhas e atos, sua trajetória existencial criminosa) ou a pena não pode ser proporcional aos crimes cometidos porque o criminoso também é um ser (!) humano essencialmente digno de direitos, a despeito do que tenha feito?...



Bem, se não há uma "essência humana" e o homem nada mais é do que a soma de suas escolhas e ações, logo nada há de intrinsecamente sagrado ou especial em cada homo sapiens que o faça digno de direitos. Se cada homo sapiens se faz continuamente na história e vai “sendo” sem ser definitivamente nada, cada homo sapiens não é algo em si! E, se ele não é, não é essencialmente digno de nada. E, aí sim, tem-se um pretexto forte para a marginalização daqueles que fazem escolhas infelizes: prostitutas, travestis e viciados passam a ser vistos como (e identificados com) as escolhas infelizes que fazem e não a partir do que eles são essencialmente (seres humanos com direitos e responsabilidades).



Na verdade, penso que, diversamente do que os propagandistas do existencialismo sugerem, o que impera hoje na nossa cultura é justamente a visão existencialista. Uma visão que me leva a olhar para o outro conforme o que ele faz ou deixa de fazer (conforme o que ele “projeta de si”), e não a partir da essencial humanidade inerente a cada outro semelhante a mim. 

Outro dia, num grupo do facebook, eu me escandalizava ao acompanhar um debate no qual pessoas “bem intencionadas” defendiam a eliminação dos “habitantes” da chamada “cracolândia”. Logo identifiquei o problema: eles estavam valorando a vida dos usuários de crack pelo que estes fazem, pela desordem que geram e pelos muitos problemas que causam à sociedade. Tive que lembrá-los que, a despeito de tudo isso, os pobres viciados são (!) mais do que seus atos de desordem e mais do que os problemas que geram. Mediante esta recordação, os debatedores se deram conta do absurdo de sua proposta inicial e deixaram de dizer estultices. Mas, se ninguém reconhecesse um “esse” sagrado naqueles viciados desordeiros, não sei qual argumento poder-se-ia invocar em seu favor. Para a sorte deles, ainda há no mundo quem acredite e valorize o ser em si, o caráter substancial e imutável, a essência...

2 comentários:

  1. Caro amigo, inegável a sua argumentação e os pontos positivos que nela encontro. Parabéns. Gostaria de apenas ponderar que o que às vezes me incomoda no dito "essencialismo" é aquilo que o próprio Platão identificou quando tentou predicar o ser: o ser identifica-se com o "mesmo" enquanto que o "outro" se torna não ser. Depois, enquanto estudioso também de Edith Stein e Aristóteles admito a teleologia porquanto somos seres (eis!) abertos à transcendência e concordo com sua afirmação de que o ser, compreendido nos liames da transcendência, jamais perderá seu dinamismo. O que ainda não consigo compreender - e talvez aqui resida minha opção por certos vieses do existencialismo - é a unicidade de caminhos para se atingir o télos, isto me causa um espanto pois depõe contra a alteridade. Suas observações quanto à política me agradam e será sempre um prazer discutir contigo. Eu aprendo muito.
    Ah, quanto ao mundo do inter-esse, cumpre um aprofundamento de como E. Lévinas na esteira de Rosenzweig o entende. É bom lembrar que o desejo do filósofo francês e desfazer a ontologia tendo como paradigma o excesso de guerras que esta compreensão, derivada da sintaxe grega, trouxe ao mundo. Lévinas propõe a Ética da Alteridade como filosofia primeira numa tentativa de se ver o outro, para além de uma definição essencialista do outro, mas considerando toda sua história (diacrônica) e sua origem. Daí o mundo do interesse como um lugar que afeta a alteridade.
    Obrigado novamente pela oportunidade de discutir filosofia!
    Espero revê-lo tão logo puder!
    Abs

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  2. Prezado, desculpe ter notado este seu comentário apenas hoje, quase um ano depois!..srsrss Ainda não faço ideia se o Blogger notifica novos comentários ou se temos que conferir periodicamente cada postagem...srsrss Bem, eu definitivamente não tenho bagagem nenhuma pra discutir a Ética nos filósofos judeus com vc. Mas eu sinceramente ainda não consigo ver exatamente como uma concepção essencialista pode gerar guerras de qualquer tipo, se ela tende a igualar os sujeitos, enquanto as guerras, na maioria das vezes, são baseadas justamente em noções de diferenciação e discriminação. (O problema de Hitler com os judeus, ciganos e eslavos era que ele os via excessivamente como "outros", não?) Eu não sou ninguém para questionar Lévinas, até porque não o li, mas, do meu ponto de vista, alteridade em excesso é muito mais perigosa do que "idem"tidade em excesso. Se eu vejo o outro como totalmente outro, tenho mais desculpas para atacá-lo do que se eu o vejo como semelhante. Quanto ao télos, vc sabe que eu, seja discutindo Ética, Política ou até Epistemologia, jamais suspendo totalmente minhas convicções cristãs. Assim, admitindo que o télos seja a união perfeita com a Fonte e Sumidade do ser, com Deus, concordo que não se poderia afirmar, mesmo dentro da mais estrita ortodoxia, um único caminho para atingi-lo. Pois, os textos hagiográficos apresentam uma inegável diversidade de trajetórias e personalidades nas vidas dos santos! Dizem que S. Columbano era um "ogro", Sta. Teresinha, uma florzinha, Sto. Antão era um asceta, S. João Bosco, um brincalhão, S. Tomás era predomínio do intelecto, S. Francisco, predomínio do sentimento, S. Luís IX era guerreiro, S. Josemaría fugiu da guerra, S. Pio X combateu a modernidade, S. João Paulo II tentou tirar algum proveito dela, os santos monges amaram a quietude dos mosteiros, os santos missionários preferiram a agitada lida nas missões. Como vê, não há negação da auteridade ou supressão da individualidade, embora o télos seja comum. Entretanto, em toda essa diversidade de modelos, há sempre uma opção irrenunciável pelo Amor, e o Amor jamais é exclusivista, embora implique numa série de renúncias e purificações. O Amor é sempre inclusivo, embora jamais seja tolerante em absoluto. É sempre respeitoso das escolhas alheias, embora nem sempre possa ser condescendente com elas. Grande abraço!

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