Constituída por três ambientes articulados entre si, a
instalação Desvio para o Vermelho de
Cildo Meireles foi concebida em 1967, mas sua composição final, exibida a
partir de 2006 no Centro de Arte Contemporânea Inhotim, foi concluída apenas nos anos 80.
O primeiro dos três
espaços que compõem a obra, denominado Impregnação,
consiste num cômodo repleto de móveis, utensílios, quadros artísticos e objetos
diversos que excitam a sensibilidade visual pela dominância total da cor
vermelha em todos eles. O vermelho aparece em diferentes tons, mas todos os objetos
são, em alguma medida, vermelhos. À primeira vista, a considerar pelo sofá,
pela mesinha próxima a ele, pelos quadros e pelas estantes, quem adentra este
primeiro ambiente pode pensar que se trata de uma sala de estar. Uma sala
incomum, um tanto exótica devido ao vermelho impregnado em tudo, mas uma sala.
Porém, conforme se atenta para os objetos
individualmente, percebe-se que o cômodo contém coisas que não se encaixam numa
sala, como uma geladeira, um guarda-roupa e objetos de escritório. O que os
objetos têm em comum não é o fato de pertencerem a uma mesma categoria
doméstica, mas sim a cor que os torna quase indistinguíveis à primeira vista,
apesar de a “vermelhidade” estar mais presente em uns do que em outros, sendo
que alguns dos objetos são de um vermelho que tende para a cor laranja. Como se
lê na descrição da instalação, “a cor satura a matéria”, transformando-se ela
mesma em matéria.
O primeiro ambiente pode remeter à homogeneização gerada
por uma ideologia totalizante, à relação passional que “vermelhifica” tudo o
que envolve a vida dos amantes ou ao sangue humano que deu àqueles objetos sua
forma ou que dá a eles algum sentido no mundo humano, que os faz objetos de
afeto, importantes ou vitais para alguém. Uma vez que o design de muitos dos
objetos ali expostos incorpora claramente o estilo dos anos 60, 70 e 80, sendo
que alguns deles, como a máquina de datilografia, sequer são usados em nossos
dias, poder-se-ia remetê-los também a circunstâncias históricas específicas. O
observador poderia imaginar tratar-se de uma referência às residências dos
convictos socialistas da finda Alemanha oriental, da extinta União Soviética ou
mesmo de algum socialista ocidental cujas paixões ideológicas somadas ao
contexto da Guerra Fria contribuem para “vermelhificar” tudo ao seu redor.
São muitas as interpretações possíveis, uma vez que
não há, em toda a instalação, um símbolo ou ícone que dê um sentido óbvio à
obra. A interpretação é aberta justamente porque não se detecta uma
intencionalidade clara do artista, e essa é uma das características próprias da
arte contemporânea. O painel descritivo da instalação de Meireles nos faz notar
que qualquer lógica que se queira estabelecer entre os três ambientes que a
compõem é artificialmente elaborada pelo intérprete, não é inerente à obra, uma
vez que a obra, em si, apenas proporciona a criação de “uma série de falsas lógicas que nos devolvem sempre
a um mesmo ponto de partida”.
No segundo ambiente da instalação, Entorno, encontramos um cômodo escuro, sem
iluminação própria e com piso negro. Conta-se apenas com a iluminação que vem
do ambiente anterior. Neste segundo espaço, vemos logo ao chão uma pequena
garrafa deitada e uma tinta vermelha que sugere um volumoso líquido escarlate que
parece ter sido entornado por aquela garrafinha caída. Conforme se avança Entorno adentro, acompanhando o trajeto
do líquido rubro entornado, a escuridão aumenta e o líquido se torna mais
caudaloso, como se fosse formar um riacho. Poder-se-ia interpretar que a
garrafa é um dos muitos objetos pertencentes à casa impregnada de vermelho, mas
que, por alguma razão enigmática, caiu numa dimensão mais interna que o cômodo
iluminado e fez vazar a sua “vermelhidade” para as profundezas de uma escuridão
mais íntima que o próprio ambiente doméstico.
Por fim, já em escuridão total, chega-se ao terceiro
ambiente: Desvio. Este último cômodo
consiste num espaço de quase total penumbra, no fundo do qual uma fraca luz
ilumina apenas uma velha pia de banheiro que está um pouco torta na parede, inclinada
para um lado. Nela, jorra de uma torneira um líquido rubro sobre a louça branca
toda respingada de algo que, à primeira vista, lembra resíduos de sangue
coagulado. Desvio lembra um cenário
de filme de horror; remete à violência. O “sangue” que jorra da torneira nos
faz pensar em crimes, ou até em grandes massacres.
E, se quisermos estabelecer uma relação com o primeiro
espaço, com a casa impregnada de vermelho, poderíamos imaginar que aquele
“sangue” que jorra na obscuridade dos “fundos da casa” simboliza as
carnificinas causadas pelo mesmo totalitarismo que “vermelhifica” todo o
primeiro ambiente. Poderíamos supor que mentalidade “vermelhificadora” que
parece inofensiva e até charmosa no primeiro ambiente é a causa do “sangue” que
escorre na escuridão do último. Ou, ainda, poderíamos fantasiar que o espaço da
Impregnação, com seus objetos
domésticos banais impregnados por uma obsessão monocrômica, representa a
banalidade da vida de um idealista com potencial genocida; a vida ordinária de
um ideólogo que, às claras, passa os dias normalmente em meio a objetos banais,
mas que, ocultamente, contribui para derramar o “sangue” que jorra na sinistra pia
que jaz na escuridão. Aquela poderia ser, talvez, a casa da família de Adolf
Eichmann, o oficial nazista que surpreendeu Hannah Arendt por ser um homem tão
banal e, ao mesmo tempo, capaz de coisas tão horríveis. Ou poderia ser a casa
de qualquer militante político que, prenhe de ideais utópicos, aceite tranquilamente – como os
jacobinos, os bolcheviques ou Eric Hobsbawm – que derramar um pouco de sangue
se justifica quando se tem em vista um futuro "livre", mais "justo" e "igualitário".
exceto que sua análise tá toda errada, porque o Cildo é socialista e essa obra é uma crítica a ditadura militar.
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